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A mostrar mensagens de junho, 2022

Aventura

As duas amigas gostam de acampar uma vez por ano. No grupo delas poucos se entusiasmam com isso, portanto costumam ir sozinhas.  Naquele ano tinham combinado ir dar uma volta por Sanabria, assentar em Los Robles, e fazer a viagem por etapas desde Lisboa.  Encontraram-se em Vila do Conde na casa da tia de uma delas. Era uma quinta senhorial de uma burguesia outrora poderosa, mas agora decadente. A tia era uma figura digna de um livro. Na extensa mesa retangular, a família e as atuais visitas almoçavam e faziam uma conversa, por certo, habitual. "Os caseiros eram quem agora mandava na quinta", dizia a senhora: "tinham-se apoderado" em troca de serviços e produtos agrícolas, aproveitando a falta de vontade de trabalhar generalizada; eram donos da casinha em frente e compravam cada vez mais terreno à tia, regalias e poder negocial. Ela, que podia fazer? A idade avançava, uma filha era doente, e a outra, adotiva - tomara ela ser ajudada.  O garfo de prata antigo furava o...

O Relógio de Sala

Era um senhor, o relógio de sala herdado. Posava cheio de dignidade dentro do seu nicho de madeira muito patinada! Ao abrir a portinhola: "cuidado para que não se quebre o vidro" -  parecia arrepiar-se a sua voz rangente. Mas eu só ia fazer-lhe cócegas na intimidade das rodas dentadas e procurar a chave da sua vida de corda. Havia um buraco para o tlão e outro buraco para o tempo. Ele ria-se da minha atrapalhação: confesso não saber bem o que a chave faz acionar. Assim desnudado, via-lhe a pele do mostrador de papel com ligeiras imperfeições, os dois ponteiros autoritários e a roda dos números pasmados, cansados da observação. "Agora é uma; agora são duas", ensinara-me a ver o tempo quando eu era pequena. "Tlão-tlão" disse incansável a cada hora da minha vida e de todos da família; conseguiu compensar com primor as horas em correria com as interminavelmente lentas: o balanço deu sempre certo, sem sobras ou défices. Ah e aquele enervante rigor de tic-tac, e...

Os balões

As crianças subiam, cada uma em seu balão de hidrogénio; tal como elas, eram coloridos. Umas mais alto ou depressa do que outras e ela lá no meio, plo meio. Olhou para baixo e um cabrito, mais um vitelo, uma ovelha, um gato, olhavam pedintes. Eram os animais já mortos, alguns comidos nas festas recentes; outros, pobre errantes, sem lar humano. Para eles não havia balão de sobra. Percebeu que estava mais próximo desses animais do que de muitas crianças que via subir céu afora. Mas tinha cores. Os animais eram a preto e branco e o pêlo parecia de algodão, apetecível. Lançou a mão para baixo e cambaleou um pouco no ar, os bichinhos deram saltos, mas não se chegaram a tocar. O balão subiu um pouco, depois mais; a menina viu um ponto no monte: a casa da família, o traçado das quintas e terras agrícolas e desistiu de procurar manter os amigos animais sob a vista. O ar era puro e um pouco fresco demais; os balões começaram a soprar ar quente na direção das crianças; várias passaram por ela, o...