Aventura

As duas amigas gostam de acampar uma vez por ano. No grupo delas poucos se entusiasmam com isso, portanto costumam ir sozinhas. 

Naquele ano tinham combinado ir dar uma volta por Sanabria, assentar em Los Robles, e fazer a viagem por etapas desde Lisboa. 

Encontraram-se em Vila do Conde na casa da tia de uma delas. Era uma quinta senhorial de uma burguesia outrora poderosa, mas agora decadente. A tia era uma figura digna de um livro. Na extensa mesa retangular, a família e as atuais visitas almoçavam e faziam uma conversa, por certo, habitual. "Os caseiros eram quem agora mandava na quinta", dizia a senhora: "tinham-se apoderado" em troca de serviços e produtos agrícolas, aproveitando a falta de vontade de trabalhar generalizada; eram donos da casinha em frente e compravam cada vez mais terreno à tia, regalias e poder negocial. Ela, que podia fazer? A idade avançava, uma filha era doente, e a outra, adotiva - tomara ela ser ajudada. 

O garfo de prata antigo furava o pernil com afinco, trinchado pela faca de prata a condizer. Mas a tia não era de lamentos e prosseguia contando as suas proezas de mulher salazarenta: o acesso à cultura e a Paris, a organização das mulheres que dirigiu... "E quando o Luís - tia - lhe telefonava de Paris, perdido, a pedir ajuda para se orientar e a tia lhe indicava o caminho de cor!" acarinhava-lhe o ego, a sobrinha. A tia rejubilava, a sua energia brilhava em todos os comensais, que sorriam satisfeitos por ter uma "tia" tão, assim tão-tão...e ela lambia as feridas da perda de prestígio ao contar do seu papel importante na organização fascista feminina, cheia de orgulho. A filha doente também ria, saindo do seu torpor e aproveitava para enumerar as suas doenças; com ninguém a interagir, ia desistindo de se explicar. Havia um silêncio e depois a filha adotiva mudava para um tema prático e do seu interesse: a ida ao cabeleireiro. A tia dava-lhe conselhos, com o mesmo espírito positivo e empenhado com que falara de Paris. 

As amigas ficaram a pernoitar no quarto de visitas, mobilado à início do século xx, e apreciaram as traves possantes, o soalho rangente, o aroma da madeira impregnada de óleo de cedro e cera, o silêncio profundo, o piar do mocho, as teias de aranha em construção, as bruxas montadas nos ramos da árvore do jardim a oscilar com o vento, o luar coado pela cortina da janela, o cre-cre do caruncho que rói à socapa a madeira, que estala viva de indignação! E naquela densidade dinâmica de labor alheio, as amigas adormecem felizes.

Mas antes, as vozes já trôpegas, ainda conseguem articular: viste como no café marginal lhe deram a vez e a trataram com reverência: "senhora professora"?! 

- Era professora? 

- Não, mas chamam-na assim!

No dia seguinte subiram ao Porrino e rumaram para leste até Sanabria. 

Após breve descanso, montaram a tenda. Ficaram num local belíssimo sob o lago, com vista para as montanhas. Uma das amigas mostrou algum receio: - não estamos demasiado próximo do lago? As águas não podem subir?

- Subir como? É verão e este rio só aumenta o caudal com as neves.

- Será?! - sorriu a amiga, ainda a convencer-se.

As férias começaram verdadeiramente e as duas amigas quiseram provar as iguarias da terra como chuleton, truchas, sanabreses...subiram ao castelo, beberam sidra, riram-se como parvas com a vaqueria onde se vendem jeans e a peluqueria onde se corta el pello, enquanto se lambuzavam com gelados artesanais. Pavonearam-se o mais que puderam, fotografaram, apreciaram os balcones floridos e o preço nos fundos dos vasos, esquecido, e depois acabaram na oficina de turismo para inspiração.

No dia seguinte lançaram-se na caminhada às cascatas de Sotillo. Subiram, subiram. A condição das duas não era comparável. Uma era sedentária e a outra frequentadora de caminhadas e caminheira por paixão. Mas existia solidariedade, e assim, descansa aqui, descansa ali, lá chegaram à cascata possível para ambas. Apreciaram e depois partiram. O caminho piorou de súbito, o corrimão estava negligenciado, abanava e alguns trechos eram feitos de traseiro no chão. A tarde avançava a fazer caretas. Anunciavam-se aguaceiros. As duas amigas constataram que tinham pouca bateria nos telemóveis. Prosseguiram, por vezes com uma dose de aventura extra, como passar por vacas livres, saltar seixos que eram a ponte disponível dos ribeiros, e o tempo a fechar e a tarde a avançar. Estava com ar de trovoada. O caminho causava dúvidas: esquerda, direita? Já tinham tomado várias decisões, sem base. E caminhavam, cansadas, sem bateria para comunicar, o céu enublava cada vez mais. Passou-lhes pela cabeça como seria dormir ao relento na montanha. E ai!, com chuva e trovoada. E lobos ibéricos. E outros, outros dos documentários. E a ninguém tinham dito para onde iam... "Que desastradas!". E cada vez andavam mais depressa e saltavam ribeiros e escolhiam opções de caminho à toa e estavam num labirinto!

Até que o milagre aconteceu: começaram a passar alguns caminheiros, mas no sentido ascendente. Trovoada, a tarde já velha...afinal deviam já estar próximo de uma povoação! - conjeturaram. Mas não, andaram, andaram, até que dois polícias as apanharam no mesmo trilho. Ah, senhores polícias, ajudem-nos a encontrar a saída, estamos perdidas. E assim foram escoltadas e ficaram a saber que o motivo da afluência era um suicídio na cascata! Depois de misturarem sentimentos de alívio com horror, chegaram ao ribeiro final, já se avistavam uns telhados. Ufa! Que sorte! Os ténis atolaram-se no lodo e desequilibraram uma delas que se amparou deitando mão, com glória, a um ramo de urtigas: aiiii! No tronco deitado para banco, ficou a vítima a lamuriar-se, esgravatando com um cavaco a lama entranhada no sapato, enquanto lambia a mão dorida e empolada. A outra ria nervosa. Entre mortos e feridos, a sorte!

À noite, já deitadas na tenda, o céu abriu-se para deixar cair uma chuva pesada, sem agulhas. Depois começou a rebentar de forma medonha. Para além do volume estrondoso fazer eco nas montanhas. As amigas decidiram proteger-se no carro e ao saírem da tenda, assistiram a um desvario de bombas a trezentos e sessenta graus, que faziam os céus pulsar de raiva por detrás dos cumes.

- E o lago não vai encher? - perguntava uma das amigas.

Depois, foi mais do mesmo, taróis, taróis, mas o sono era tanto, que compensou! E o lago portou-se bem!

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