Fragmentos

A aluna ficava frequentemente internada. Tinha hemofília - informava. Às vezes faltava por outro motivo: ia à baixa de Lisboa. Ficava a olhar para a janela do apartamento onde vivera com a mãe, que falecera com cancro. Sentava-se onde calhasse, do outro lado da rua, e ficava concentrada no passado, a matar e a recriar - saudades. Muitas saudades. Um casal espanhol oferecera-se para a adotar, mas a mulher também tinha cancro. Beatriz não sentiu forças para perder uma segunda mãe. Não quis! 

Bea vivia com a avó, um tio, um primo. O tio tinha-lhe batido com um fio elétrico. Podia mostrar. Aqui. (Silêncio). Como seria uma nódoa negra numa pele africana? - alguém desejou enfiar-se num buraco - que vergonha!  

A avó tinha falecido. O tio já emigrara. Sim Bea tinha muita família espalhada pelo mundo. Gente importante. Endinheirada. Mas não! Queria manter a casa. Ela e o primo seriam a família que sobrava. Não queriam incomodar ninguém.

Não era hemofilia. A mãe não morrera de cancro. Ah! Então é isso! Arranjar ajudas. Pessoas maravilhosas, compreensivas, no mistério da educação, na escola, na segurança social. E a solidariedade e a empatia da professora Marina. E o part-time que lhe arranjara; outra professora, dera- lhe um telemóvel, para ficar facilmente contactável; os exames com medidas especiais - tudo discreto, acordado com o ministério. A renda paga! E vai para a universidade privada. A bolsa. A diretora a par da situação com que de imediato se solidarizou. E ela, a Bea, não quis mais estar por aqui. Juntaram-se muitos no rito final. Afinal não fizeram tudo. O que faltara?

Uma outra garota, a Míriam, que viera também despedir-se da colega, disse segredando a alguém: aquele é que é o meu pai! O pai! Aquele homenzinho raquítico e coxo. O pai de que tanto falara com alguém. Outro recorte. Outro cruzamento de vidas. Fica para depois se contar a si mesmo. Noutro dia.





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