Madressilva

As copas dos pinheiros mansos recortam ondas no céu pálido, ao anoitecer. Contêm, num manto espesso, todo o palrear dos últimos pássaros. Os ninhos estão prontos. A gata da rua clama por vida nova. Tudo se apronta e eu lanço o fio do olhar à madressilva. Procuro, fixando a vista, os recantos onde escondia saquinhos de dor. Em tempos, salpiquei a planta com miradas sofridas por dó de mim. Ainda não a limpei. Ainda lá poisa a memória e reencontro os alçapões. Porém, o olhar já se distende pelo ondular dos pinheiros, acompanha a imensidão da noite que se acomoda nas copas, mansas e idosas, donas da contenda do dia, plenas de presente e prenhes de primavera. Tanto! E eu deixo para outro dia o trabalho de desempacotar as dores antigas. Aspiro o aroma forte da madressilva. Suspiro. Aguardo. A noite deita-se no pinhal. Já não ouço os pássaros, nem a gata. Agora, um mocho ao longe; o repuxar do travão de mão. Deixo-me estar! Ou ir! Uma azáfama, quase imperceptível, por certo de contentamento futebolístico, só porque dobrei a atenção. Podia ter aqui uma cerveja. Penso em voltar para casa. O jornal da noite, por certo, desfia a guerra e as opiniões. A pandemia cedeu-lhes a vez. Fui tão parva contigo! Despeço-me do dia com uma mirada pelo pinhal escuro. Não há luar! Os cães ladram ao longe! A madressilva podia ser podada, penso que um dia destes terá de sê-lo. Enfim!

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