Monika e ele
Monika tem nichos de memórias. Nem todas lhe pertencem. Acolheu-as órfãs das histórias biográficas dos seus amores, entre o enrolar do beijo e o desatar dos pergaminhos. Fê-lo porque sabe que o amor é um deserto perene onde nada mais permanece; o excedente floresce em cristais rosáceos e só a vida simples persiste, clandestina, resiliente. Os oásis são os outros.
Hoje Monika caminha naquelas gorges do Alto-Atlas, cavadas, profundas. Observa os vultos que após a pandemia passam evitativos: encontros fugazes, bailados em vibrações abruptas de mosca. Anónimos solitários que por ali vagueiam em capricho sinusóide, libertam aromas de esplendor exótico e olhares pudicos, tensos de atração-repulsa condensada num fatídico tango! Escrutinam os promontórios, penetram com foco de caçador experiente as fendas mais finas das grutas fundas, invejando a oblíqua fecundação de luz, afunilada, mas vencedora; capturam com avidez as poses dos arbustos empoleirados, infelizes e orgulhosos; enquadram e roubam a sua sagacidade para dentro dos telemóveis.
Aquele lugar palpita de memórias d'ele. Ele deixara lá o seu passo leve em baixo relevo; a sua amante, fragrâncias de mulher distinta. Ambos espalharam olhares e comentários eruditos, risadas e mãos de contenção sobre a boca ligeiramente conspurcada do piquenique chique. Ela liderava, ela se sobrepunha, ela tudo sabia, da tenda ao trilho, do hotel ao túmulo. Desenvolta, dava ao macho a ambivalente sensação de vaidade e humilhação. Algum défice ele teria, cogitava, se o seu brilho tardava sempre no rasto dela, que despachada, tomava a dianteira. O seu coraçãozinho, duvidoso, incerto de autoestima, corroía-se devagarinho mas com eficiência e à noite, depois do jantar, animado para ela, esgotante para ele, só queria ser abandonado ao sono fingido, sem ousar expor o seu corpo nu aos fulgores felinos da fêmea competitiva. Uma semana depois, já regressados, refugiava-se na sua casa de solteiro, deixando um lugar frio na cama de casal, com desculpas disto e daquilo, "pantomimas"! Sabia-se desonesto. Admirava-a, sentia verdadeiro orgulho do seu brio profissional, o seu elan, o arrebite do pequeno nariz e as covinhas do riso, a teia de relações... Era tão perfeita, não fora a exacerbação do ego dominante e devorador de fêmea astuta. E ávida. Ele mal pode admitir que lhe sobrevive! Ainda hoje! O desenlace foi chegando por arrastões sucessivos até à agonia final. Hoje é luto!
Ele não chegou a conhecer realmente Monika. Não fez as perguntas certas. Não se quis comprometer mostrando interesse. Mantinha-a em imaginação ativa quando a realidade era um banho-maria. Dava o tom, bastava-lhe a alusão e Monika devolvia-lhe música. Mantinha uma dança de vai e vem de comunicação homeopática: surgia se ela se afastava; sumia se ela comunicava. De vez em quando fingia interesse. Repetia convites que já tinham sido aceites. Empatava. E assim ia mentindo nas intenções e calculando quanto mais tempo teria paciência para aquele jogo. Sweet Monika! O livro dela era outro.
Fecundava-lhe a mente onde projetava histórias, conspurcando-lhe a memória inocente. Fazia ménage a trois com os fragmentos da arqueologia da sua vida: os livros, as canções, as viagens de outro amor, que nunca pertenceriam realmente a Monika, sem ela o saber. Sublimava assim a saudade doentia, a desilusão da perda que o trouxera ao desterro africano numa autoflagelação.
No seu livro Monika florescia aquela relação, estimulava, dava, era responsiva.
Tornou-se numa colaboradora do seu trabalho de pesquisa. Ele não recusou o benefício. Aproveitou. Depois cansou-se. Coincidiu com o momento em que Monika concluiu as suas investigações secretas. Eis que descobriu qual o seu papel naquela história e apressou-se a acabar o livro.