O Rapaz
Lembra-se do Ti Vicente? Sabe como era hábil em propagar histórias metade verdade, metade invenção! Dizem que se lembra das de há décadas. Décadas! E continua a contá- las com aquela pitada de fantasia que ninguém sabe ao certo em que parte está. Quase um século, e mantém as versões, o malandro. É velho como ninguém. Oh Rodrigues, vocemecê é de fiar e sabe bem que o rapaz era amalucado! Ainda assim não merecia o destino que lhe coube em sorte. Contam-se histórias. Nunca me importei. Mas nos últimos anos é que não me livro de um pesadelo, que volta sem aviso e me deixa perplexo por semanas. Pois resolvi-me dar-lhe tino e perceber de vez o porquê da insistência e lembrei-me de vocemecê -engraçado que já não dizia esta palavra há que séculos desde que metia conversa com os homens do barrete negro, que sempre conheci desatualizados e rezingoões, cá da terrinha, vocemecê sabe. Pois como estava a começar a dizer-lhe, Rodrigo, eu fui visitar o centenário ao lar onde agora está, e digo-lhe que ainda hoje é um homem sedutor: percebi que tinha uma ou duas donzelas embeiçadas mais jovens uns vinte anos do que ele, o que é significativo, porra! Fui lá perguntar-lhe das histórias do danado do miúdo que me persegue o espírito. Ainda não lhe contei: o rabino aparece a cair num poço sem fim, grita que nem uma gata com o cio e depois cala-se de repente, sem se ouvir o estalo na água. Fico assim em suspenso, à espera do maldito desfecho, mas nada. Até podia ficar aliviado, mas é um desespero sem fim, um abismo sem solução. O safado do garoto logo salta à minha frente, assim que tento retomar o sono e vejo-lhe o riso escarninho que parece querer entrar pelos olhos dentro, como um grande plano dos filmes, sabe?! Pula, faz fintas, atira-se para cima dos molhos de palha de trigo; a seguir salta-lhe o rafeiro pró flanco, que tem um quê de cara metade do diabinho. Raios que não percebo o que quer esta lembrança de mim! Eu namorava a irmã dele. Estávamos os dois... - vocemecê sabe!... E o raio do moleque na calada a saracutear-se na copa do pinheiro logo ali acima, mudo que nem um rato. Eu não tinha intenções com a miúda, compreende?! Naquele tempo não dava jeito que se soubessem certas coisas. Não queria prisões. Tinha a minha vida pra viver e que vivi. Não lhe disse antes, para não parecer emproado, mas agora faz sentido contar-lhe. Subi muito na vida. Estudei degrau a degrau enquanto trabalhava. Também tive sorte. Muita! Vou poupar -lhes os pormenores. Casei muito rico. Não posso dizer que não sou culto. E sempre limpei o restolho das sandálias, por assim dizer. Nunca me deixei prender em detalhes incómodos e dei-me bem! Muito bem! Talvez não se divulgasse cá pela terra, que não me melindro pois não mais dei notícias. Voltando ao que interessa, o rapaz parece que tinha o hábito de trepar ao pinheiro - dizem que gritava que se ouvia na vila, a kilómetros - gostava de brincar com o eco, o demónio! Grunhia e alavancava o pêndulo da haste final do pinheiro e cavalgava. O Ti Vicente diz que cresceu com a árvore. O raio do miúdo! Havia de estar ali naquele fim de dia. Sabe! Ainda não lhe disse. Há uns meses diagnosticaram-me..., sabe... Não queria que ficasse a dúvida... O raio do garoto, assim que foi descoberto voou plo campo fora comigo no encalço até que o ladrão... perdi-lhe o rasto! Maldito! - pensei. "Era bem feito que caísse para aí num poço! Até pagava pra ver! Raios!" Praguejei e virei as costas. Não voltei para saber da maldita irmã dele. Gentinha enfezada de quem me devia libertar. No dia seguinte andei a magicar. No depois fiz as malas... e foi até hoje, que a minha vida se desenrolou. Como lhe disse correu como num sonho, não fora o maldito pesadelo recorrente, digo, que se repete muito, que nem com comprimidos para dormir apaga e o diagnóstico de há uns meses: esse é que não há nada a fazer! Ah, e estava-me a esquecer de lhe dizer o que o velho Ti Vicente me contou: não é que o moleque, o meu cunhadito de faz-de-conta, se safou por causa do rafeiro que latia que nem um endemoniado, ia e vinha à taberna do Sr. Amadeu, até que desconfiaram e o seguiram, pois desaparecera o miúdo há um par de dias. Afinal safou-se na vida - dizem que é doutor! Morgado! Dr. Morgado! Deve ser só coincidência!