O Rio
Ao fundo, o rio parece uma serpente de prata a esgueirar-se na paisagem. A mulher está debruçada na margem da piscina de borda infinita a olhar o rio que se afasta devagar, cone após cone de montanha riscado por pés de videira escorreitos, sem míldio ou ferrugem, enfileirados e orgulhosos da sua casta. Ah! Quem vir o rio escorrer assim, inocente, não imagina o molde frio que envolve o homem que nele mergulha, que inesperadamente se sente só e descobre o cheiro a verde-podre e o lodaçal que chega a puxar-lhe os pés com avidez; as ervas a prender-lhe os cabelos; laços e enredos junto aos tornozelos e às mãos que os desemaranham, enquanto os peixes curiosos e indiferentes debicam a pele num toca e foge... mas o homem desimpede todas as ramificações do próprio corpo e forma depois um conjunto harmonioso com a superfície do rio deslizando nela; a barriga bronzeada virada para cima, agora que já se sente seguro, descansa, respira fundo. A mulher não o vê nem ele a vê a ela, tão longe que estão. No lodo, abaixo da superfície de minuciosos flashes, há toda a espécie de dejetos em reboliço, bolhas de ar, um fervilhar de gluques e interação, na morte e na renovação. As pedras arredondam polidas pela corrente e rebolam de tempos a tempos. Não pode haver maior solidão e um sentimento de aproximação à morte - o homem devia de cuidar de preparar esse momento do futuro - um dia o rio deixa de ser uma diversão e passa a reger o ciclo da vida. Só uma mente infantil se julga segura e em dominação. O rio não é prata. O rio não é calma, nem regularidade. Que inconsciente está a mulher na piscina do hotel rural sobre os temas da vida que não a dela e até dessa.... Vira-se para o marido, que lhe tira a foto, sorri triunfante para os amigos da rede social, com a água pelo peito, que lhe sobe, redondo; pensa na sorte que tem, na vida boa, enquanto o consorte, muito longe em pensamento, deseja vagamente outras fêmeas. Entretanto o homem no rio arrepia-se e sai pingando água doce na margem onde o espera uma toalha de fibra cinza; saca do lanche e fica a tremer enquanto o olhar segue o rumo do pôr do sol com o seu espalhafato alaranjado antes de se ver absorvido precocemente pelos cumes das montanhas azuladas. Nos seus ouvidos, os insetos zunem afeitos marcando ritmos de verão e nos óculos de sol os mosquitos brilham em nuvens que o distraem por momentos; cheira ao chouriço da sandes, ao chá verde frio do termo; passa por ali uma brisa fresca que lhe eriça os pêlos dos braços. A mulher seca agora na espreguiçadeira, uma pétala de cor magenta pousa no cabelo dela até o vento a levar e o seu homem volta do bar franzindo a testa e apequenando os olhos cegos à luz derramada pelo sol, enquanto mói um arrependimento com sabor a whisky. O rio, lá em baixo, apaga-se discreto, em negrume.