O Miguel e a Dislexia

O moço tinha um sorriso cativante, olhos como faróis azuis em moldura loira. Bonito e confiante como um vendedor de casas. Chamara-o por motivo inespecífico: "havia de ter qualquer coisa, pois não aprendia". Conversámos animadamente e pedi para ler. O Miguel tentou-o, a chorar. Foi um choque!
A tia era quem o criava e contou o problema no nascimento e que uma psicóloga já dissera que tinha dislexia. 
Não sei se era da linha cognitiva-comportamental prevalente, mas no meu curso desvalorizavam-se estes "diagnósticos" e acrescentava-se com ironia: "agora todos têm dislexia"!
Atirei-me aos livros. Foi muito árduo explicar aos professores as necessidades do aluno; eles protestavam que aquele aluno não podia estar naquela escola. Estávamos no início dos anos noventa. Cheguei a ter comigo um membro do Conselho Executivo e lá se fizeram adaptações. Dali em diante, fiz uma jura: "iria ser expert em dislexia" e assim tentei, fazendo várias formações e aprendendo também na prática. 
Entretanto, o Miguel debatia-se com imensas dificuldades no secundário e pôs-se a fazer um curso de eletricidade à noite, com um professor de nome engraçado, da banda desenhada.
Eu prossegui alavancando disléxicos: miúdos tristes, atrapalhados, desrespeitados, chorosos, miúdos que detestavam a escola, que se encolhiam e suplicavam para não ler...Quando chamava os pais, pedia também para lerem em voz alta, e, não raras vezes, me deparava com o mesmo comportamento esquivo e lá vinha a história da dificuldade escolar misteriosa. Era um prazer imenso desmontar e recontar a história escolar de pais e filhos e mostrar-lhe génios da humanidade que foram disléxicos, mas também estrelas de Hollywood, da música e tantos heróis que encontrei nas escolas - e relatava as suas jornadas. E eles sorriam timidamente, mas eu sabia que uns meses mais tarde os sorrisos seriam bem mais tranquilos e expansivos.
Entretanto, o Miguel foi fazer formação num centro a sério e a tia telefonou-me muito grata pela sugestão, pois tinha sido a melhor decisão, que nunca o vira tão feliz e que iria montar um negócio na garagem dos tios - ora, o Miguel era assim quando a escola não o fazia sentir humilhação. Mas um dia, com esta minha mania de contar histórias, alguns dos meus alunos de um curso de formação profissional, disseram: conhecemos um rapaz assim no curso do professor x, (o tal com nome de BD), "era bronco, todos gozavam com ele! As aulas eram lidas no projetor!".
Meu Deus, o Miguel mentira! Sempre a tentar deixar-nos felizes! Um dia foi visitar-me e levar um perfume comprado pela tia: ia meio sem jeito, apesar do sorriso eterno! Eu também fiquei apalermada. Depois, aceitei e continuei a identificar disléxicos e a ajudá-los a recuperar a autoestima e a aprendizagem. E foram tantos, já no terceiro ciclo!
Por isso, não aceito bem que agora não se invista tanto na avaliação. Ou haja enublamento dos diagnósticos, porque sem rótulos é melhor; ou se contem palavras (modernismo jurássico dos USA) e se tenha um "ajudante" na sala de aula para muitos alunos, e só às vezes (mas com classe e especialista! caso evidente de (de)skilling que irá afetar todos os profissionais da educação - vejamo-nos nas costas uns dos outros, ou naquele poema " primeiro levaram..."); que se tenha de lembrar o júri de exames que estes não são adequados a vários jovens, que os professores não gostem de ler os testes e que nem ao menos usem a tecnologia para o fazerem: que birra! Tantos anos depois do Miguel e ainda é assim!
Ah, e por falar em rótulos, provavelmente não era dislexia o que o Miguel tinha, dada a provável lesão ao nascer. Mas o que importa é que ler era um sacrifício astronómico e uma tremenda e estúpida humilhação por preconceito e rigidez: qual é o problema de pôr um computador a ler para o aluno, ou deixar as questões lidas em mensagens de voz nas plataformas informáticas da escola?! Irra!
Encontrei um livro na Amazon, que me vai explicar tim-tim por tim-tim as diferenças, a propriedade científica e educacional dos novos critérios de identificação das dificuldades específicas de aprendizagem, onde se insere a dislexia, como nos métodos de Resposta à Intervenção e na Multi-tiered System of Support. Lá se vão uns euros, mas foi sempre assim, apesar da falta de reconhecimento do tremendo investimento que um psicólogo escolar faz na sua formação. Até paga para trabalhar - é o que significa ter uma ordem profissional.
Mas este espaço era para o Miguel e sempre será ele a motivar-me! Agora noutros desafios: o dos professores que guardam um relatório que "não diz nada de especial, só umas dificuldades de aprendizagem da leitura" (específicas - não sabem que é dislexia), ou os alunos sujeitos ao "sim, na grelha" e "nada na realidade" e ainda os que mudam de escola, frequentemente no secundário, que têm de repetir a cada professor, a cada teste, que têm dislexia... Escolham o prefixo: (ev), (inv), ou (rev)oluções?!
E sabem?! Eu acredito que podemos evoluir, e que o método clássico de diagnóstico, deixava alguns para trás, que não tinham a discrepância ou tinham critérios de exclusão, por motivos sociais ou comorbilidade. Com flexibilidade e diálogo científico e profissional, ouvindo as vivências dos alunos e suas famílias, refletindo com abertura! Fica a fé! 
Como estará o Miguel hoje? Já será um homem maduro!

* Miguel -  nome fictício; história real.

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