O Gancho
Daquela tarde ficou um gancho na memória. No campo da bola, tu e eu, de calças coçadas, as minhas Lewis e as tuas.. não importa!...
"Pega daí oh merdas, chuta, barra, gooolo, fuinhas, eh pá, bule, dança piolhoso, anda, caprinos dum cão, rosna Benedicto, Eusébio, campeão! Goologuiiiilhermeee! E cai tudo! Esconde o esférico lá na tua casa, na minha não guardam nada, os piolhoso dos meus irmãos vendem tudo ós drogados duma figa, esconde lá, anda, na tua casa a tua mãe guarda, conheço a tua mãe, apareceu junto ao carvalho ao pé da barraca e ficou lá a olhar prá gente como parva a ver o jardizulógico, foi um fartóte, mas depois a gente foi lá ter com ela e deu-nos rebuçados e as tuas calças, vês, ficam catitas cá no man! A tua mãe é um bocado xoninhas, mas fez-me uma festa na cabeça e tudo, nã quis saber dos piolhos, c'até m'arrepiei dos culotes ! A gaja da minha mãe até se enciumou e tudo, chamou-me logo, a chiba! Falou bem alto para o meu pai também ouvir: oh muleta, oh Galhé, volta já aqui nã inc'modes a Dona, tás todo porco, nã te disse já para ires acartar água pró banho, oh miserável?! Ela tava cheia de ciúmes do cheirinho da tua mãe, nã me esqueço, o cheirinho ficou às voltas de mim até ó dia seguinte! O que importa é que a gente somos amigos, não é?!"
É, Galhé! Somos! Aonde estás tu após este meio século? Naquela manhã de geada um grito trémulo que se enfiava como agulha no tímpano e crescia por entre o canavial do campo de bola improvisado até ser capturado no poço da horta do Ti Cipriano, logo ali ao lado, onde semeámos bolas e lágrimas por perdê-las! Galhéeee, gritava a tua mãe, a tua gaja, por anos a fio. A música do grito foi evoluindo até um lúgubre rumorejar, que se confundia com o piar dos mochos à noite e se prendia na manta que cosia sem fim. Vê lá que no dia da santa padroeira - lembras-te da festa de 15 de agosto? - ela ofereceu a comprida manta para passadeira que ia da igreja do monte ao largo da Vila, que são uns kilómetros, não confirmei mas é o que dizem, que a manta que ela fez a chorar com saudades de ti, não tem fim... Disseram também que foste dado para a Itália, não sei se te roubaram os da caridade, se pediram aquela assinatura com o dedo à tua mãe e a enganaram.. Será que fizeste uma vida de calças Lewis ou de outro aprumo?, ou se alguém te quis o tempo de coser uma manta da Sra. do Monte até ao largo da Vila?! Em mim ficou um gancho cravado no imo que resiste ao desenlace e não se desvanece o meu grito surdo em canaviais ou poços fundos!
"Pega daí oh merdas, chuta, barra, gooolo, fuinhas, eh pá, bule, dança piolhoso, anda, caprinos dum cão, rosna Benedicto, Eusébio, campeão! Goologuiiiilhermeee! E cai tudo! Esconde o esférico lá na tua casa, na minha não guardam nada, os piolhoso dos meus irmãos vendem tudo ós drogados duma figa, esconde lá, anda, na tua casa a tua mãe guarda, conheço a tua mãe, apareceu junto ao carvalho ao pé da barraca e ficou lá a olhar prá gente como parva a ver o jardizulógico, foi um fartóte, mas depois a gente foi lá ter com ela e deu-nos rebuçados e as tuas calças, vês, ficam catitas cá no man! A tua mãe é um bocado xoninhas, mas fez-me uma festa na cabeça e tudo, nã quis saber dos piolhos, c'até m'arrepiei dos culotes ! A gaja da minha mãe até se enciumou e tudo, chamou-me logo, a chiba! Falou bem alto para o meu pai também ouvir: oh muleta, oh Galhé, volta já aqui nã inc'modes a Dona, tás todo porco, nã te disse já para ires acartar água pró banho, oh miserável?! Ela tava cheia de ciúmes do cheirinho da tua mãe, nã me esqueço, o cheirinho ficou às voltas de mim até ó dia seguinte! O que importa é que a gente somos amigos, não é?!"
É, Galhé! Somos! Aonde estás tu após este meio século? Naquela manhã de geada um grito trémulo que se enfiava como agulha no tímpano e crescia por entre o canavial do campo de bola improvisado até ser capturado no poço da horta do Ti Cipriano, logo ali ao lado, onde semeámos bolas e lágrimas por perdê-las! Galhéeee, gritava a tua mãe, a tua gaja, por anos a fio. A música do grito foi evoluindo até um lúgubre rumorejar, que se confundia com o piar dos mochos à noite e se prendia na manta que cosia sem fim. Vê lá que no dia da santa padroeira - lembras-te da festa de 15 de agosto? - ela ofereceu a comprida manta para passadeira que ia da igreja do monte ao largo da Vila, que são uns kilómetros, não confirmei mas é o que dizem, que a manta que ela fez a chorar com saudades de ti, não tem fim... Disseram também que foste dado para a Itália, não sei se te roubaram os da caridade, se pediram aquela assinatura com o dedo à tua mãe e a enganaram.. Será que fizeste uma vida de calças Lewis ou de outro aprumo?, ou se alguém te quis o tempo de coser uma manta da Sra. do Monte até ao largo da Vila?! Em mim ficou um gancho cravado no imo que resiste ao desenlace e não se desvanece o meu grito surdo em canaviais ou poços fundos!