Eu, Acumulador me Confesso
Prom foi carinhosamente batizado assim, pela mamã, desde que fez uma birra memorável por cromos de dinossauros em promoção, que colecionava - já não se lembra ao certo, talvez há três décadas e muito. Prom para os amigos e para si mesmo. Um cromo, é o que tu és - sussurra-lhe a vozinha crítica irritante a um decímetro da orelha direita, onde se instalou o diabinho da enfadonha consciência. Um cromo! Sim, teria muito a contar de irritativo sobre a luta das partes ou outra pathos, mas não! Quer Prom, com o leitor, manter uma conversa fluida - esclarecedora e sem fraturar mais nada em si, nem no interlocutor, por simpatia -, delegando-me essa tarefa. Problemas, quem os não tem?! e a civilização causa ela própria aquele mal estar, como diz o outro.
Os caminhos de casa começam pela verificação de soslaio se há conhecidos nas redondezas do prédio, e de vizinhos no elevador e na entrada para casa; com a probabilidade a decrescer de um para outro espaço, a respiração vai-se tranquilizando e quando fecha a porta atrás das costas, dispara qualquer químico de alívio no cérebro. É a felicidade! O espaço está à conta e tem de furar por um corredor errático com alguns montes e vales de muita coisa. Talvez roupa, sim a maior parte são camisas, calças, todas as meias - pois tem andado de pés colados aos sapatos. Gosta de fantasiar que tem companhia nas cavernas dos amontoados. Talvez uma lagartixa, ou um animal já extinto, algum de formato mítico ou mesmo um desenho animado. Ri-se da sua infantilidade, mas vai deixando migalhas por onde elas caem para alimentar esse ser da virtualidade ou não. É um conforto chegar ao lar. Empurra uma carga de roupa, livros, tralha avulsa, candeeiros, canas de pesca, capacetes, bonecos, etc. para um qualquer lado e senta-se ali mesmo, livre, completamente livre da crítica alheia, das opiniões, das conversas iníquas. Liga a televisão e abandona-a, sempre circum-navegando com esforço cada molho por entre a espuma da balbúrdia. O som da TV faz -lhe companhia. Senta-se, por vezes, e faz zapping; estaciona num canal internacional, de preferência oriental, mas americanizado. Em simultâneo, recostado por onde puder, nas dobras do sofá destruído e puído, com zonas desventradas exibindo espuma, faz joguinhos online, com vício; faz outras coisas, todas com adição. Repousa, por fim, cansado e quase satisfeito, a ver um lote de séries que descarregou pirateando uma qualquer baía virtual dos peers, enquanto devora o conteúdos dos pacotes de gulodices, com que janta.
Dorme por ali mesmo. Não vai à cama há uns meses. Não sabe dos lençóis. Que cena! - diz , achando-se in. Olha para os livros nas prateleiras, orgulhosamente: da literatura à alta programação. Aqui e ali caem molduras de amizades antigas e afundam-se diretamente nas moles de entropia. Às vezes, tem saudades e enfia a mão às cegas, para salvar qualquer memória Kodak. Foi há tanto tempo! Como se fosse agora. O tempo congelou, conclui, e nem uma só ruga o fustiga; só a necessidade da máquina um porque o cabelo se despede.
Divaga sobre a cerveja artesanal que vai beber com o Berto, que o vem visitar em breve. Desenrasca uma saída, ele não entrará em casa. De qualquer modo, não tinha problemas em dizer-lhe que hoje "não dava", não tinha tido pachorra de limpar a casa, o que lhe dava até um ar de macho, ou, no mínimo, meio rebelde, como gostava de se apresentar ao mundo; tinha a alternativa de mostrar o lado intelectual: era isso - estivera a ler! Um rebelde adaptado: um burguesinho com pedigree.
Nunca falta ao trabalho. Funciona de modo maquinal. Já se questionou se não será Aspie, mas não investiu na resposta. Tudo está certo, não se lamenta. Em particular, quando a mamã o deixa em desvantagem em relação ao mano, todo o mundo com hálito, fica na ignorância se ele tem sentimentos, ou sequer vida própria. Só no jogo, nos chats paralelos do jogo digital, lança uma ou outra boca. É um avatar. Melhor. É aí que se dá a conhecer, um pouco.
Às vezes passeia, convida ou é convidado. Algumas delas, arrasta-se até uma praia quase vazia e larga tudo com o acompanhante; desaparece de olhos no chão, alternado com o horizonte; passeia sobriamente como numa procissão; faz sempre o mesmo, para se revigorar - ritual antigo, em que mergulha o olhar na linha da espuma, revê memórias; o avô abandonado no meio dos conflitos familiares; a sua pobreza...Com ele aprendera a conhecer o rio e o mar, em pescarias que lhe marcaram o mote dos prazeres da vida...Pensa-se que visita o avô em mente, quando dá as costas a tudo e o peito ao mar. Costuma, por essas alturas, recolher bugigangas na praia, com que adorna as parcas superfícies livres de sua casa, endossando o volume dos afetos no doce lar.