Encontrei o teu estranho professor da primária, Sandra!
Uma história real de uma jovem que foi alvo de múltiplas experiências dos sistemas - de educação, da saúde e do trabalho - durante a sua breve vida. Uma história de inclusão e de exclusão.
Foste tão cedo: só tinhas 34 anos! E tão tarde, para o sofrimento de mais de uma década! Fiquei sempre a pensar que partiste porque quiseste - já bastava! Ainda me lembro de não me sentir capaz de ir trabalhar naquele dia, do que a médica me disse, da lei. Que sabe a lei sobre os nossos afetos?! Eras para mim, meia irmã, meia filha, uma amiga querida, insubstituível. Vi-te crescer - pelo menos desde os primeiros anos da escola primária -, ajudei-te nas aprendizagens, aconselhei-te, fiz-te orientação vocacional, fizeste-me companhia... Mais tarde eras tu que ouvias os meus desaires, me equipavas o computador e resolvias engulhos informáticos.
Na escola primária andavas aflita com a leitura. O teu professor era diferente, mas tu até gostavas dele! A tua mãe achava estranho: o professor instruía que ninguém te poderia ensinar as matérias escolares, porque te iria confundir! A tua leitura estava muito atrasada, evoluía muito mal, afetava o teu amor próprio. O tempo passou e tu sempre má leitora e a escrever com erros!
Nessa altura, eu era estudante dos primeiros anos de psicologia e estava a colaborar numa investigação da professora Luz Cary, do designado Grupo de Bruxelas, creio. Desenhámos em cartões; treinámos com estrunfes; estudámos sobre método global e fónico, e o que hoje se designa por consciência fonológica, e fomos para uma escola do 2º Ciclo, ali na Penha de França, onde uma de nós (a Isabel B.) fazia Educação pela Arte.... A minha tarefa era com o grupo experimental, fazer exercício-jogo com estrunfes, a dizer pseudopalavras, e com o grupo de controlo, a tocar xilofone. Sempre fiquei com muito orgulho de ter participado nessa investigação, pela importância que mais tarde a consciência fonológica veio a revelar ter para a aprendizagem da leitura e para a prevenção de problemas de leitura em disléxicos.
Eu desconfiava que tinhas dislexia, mas não tinha instrumentos científicos, técnicos, nem era ainda profissional; achava estranho o teu professor ser irredutível quanto ao método - já não lembro com perfeição, mas penso que ao falar com a tua mãe lhe pedi que sugerisse ao docente para experimentar outras maneiras de ensinar a ler... A verdade é que nos ríamos da teimosia do professor. Mas o caso foi sério e impactante! Levaste muitos anos a aprender o suficiente para não perturbar a aprendizagem do resto; foi mais difícil e lento, atrair-te para o prazer de ler; ficaste a desconfiar da tua competência escolar.
Um dia leste um poema escrito por ti. Estava simplesmente lindo! Lindo de morrer! Eras muito sensível e terias uma alma de artista, certamente. Mas o teu pendor foi para a Informática e lá fizeste o curso superior no Instituto Superior Técnico. Como tinhas Lúpus galopante e experimentaram em ti muitos novos medicamentos, ficaste com os pulmões destruídos e precisavas de arrastar uma garrafa de oxigénio contigo, transporte especial e algumas acomodações nas aulas e na avaliação. E não é que as tiveste?! Há décadas atrás, um serviço de psicologia do Instituto tratou de tudo! Ficámos eternamente gratos! Conseguiste até trabalhar a partir de casa para uma empresa internacional coma ajuda de um serviço de empregabilidade da Câmara de Lisboa. Às vezes ias a reuniões na empresa, e a Carris disponibilizava-te transporte. Foi tudo muito bem! A saúde não perdoou. Culpa de ninguém! Apenas os cuidados intensivos não tinham rede wireless para poderes comunicar através da Internet, coisa que continuam a não ter - tu já não podias falar! Isso custa-me a aceitar: o isolamento das pessoas, quando às vezes estão nos seus últimos dias de vida: tu estiveste lá, meses, muitos meses, incomunicável, excepto quando o médico X fazia batota e te deixava ligar o wireless, às escondidas. Bendito!
Mas hoje, dia 16 de janeiro de 2021, soube porque tinhas um ensino da leitura (e do resto) diferente. Um dos meus conhecidos do Facebook, ao fazer uma homenagem a uma amiga que partiu também, referiu a experiência no início dos anos oitenta, na tua escola. Foi então isso: usaram o método Freinet e estiveste numa experiência piloto.
Não sei se chore, não sei se ria! Que bom haver inovação pedagógica! Mas, do lado de cá, da Sandra, algo não esteve bem! Na leitura e escrita - apenas aí!
Mas sabes, Sandra?!, sabes que se fosse hoje, seria provavelmente a mesma coisa?! Os professores do Movimento da Escola Moderna continuam a ensinar com um método, digamos, não fónico. Sei porque perguntei a uma ilustre colega que o usa e que coordena uma escola onde o aplicam. E penso!... Mas a investigação sobre a consciência fonológica e a importância do método, chamemos-lhe fónico, analítico-sintético...não global...??? Como não há um debate sobre estas questões?!
E penso mais, Sandra! Será bom fazer inovação pedagógica, assim? Sem escolha por parte das famílias? Sem alternativas, caso não esteja a funcionar? Quero acreditar que hoje faríamos melhor, mas não consigo acreditar muito.
Muitas experiências fizeram em ti! Até eu, a estudar Piaget e a fazer trabalhos práticos, te cativei para seres meu "sujeito"! E depois, na medicina - quanta experiência fizeram contigo! Esperemos que tenha sido tudo para o bem da humanidade! Tu foste a pessoa mais resiliente que conheci! Obrigada, amiga! E vês, vou ficar a puxar pela memória para lembrar porque nos divertíamos com aquele professor "estranho"! Que tu adoravas, de resto!