Anatomia de um Doutor

É de direita. É a sua marca. Pouco hábil no autoconhecimento, justifica-se com a oposição à mãe, que era "camarada"...Das suas memórias de menino, ressoam os gritos festivos e agressivos dos corredores de gente desbragada, entrecortados pelo perfil geométrico dos prédios das avenidas novas contra céus quase sempre caprichados por nuvens! Fantoche atónito, entre pernas e sapatos, sentia o braço repuxado pela mãe distraída com os comandos dos organizadores, as palavras de ordem. Era assim que se recordava de andar atrelado, nas manifestações do pós-vinte cinco de abril. Mãe. Mãe. Que mistério aquela mãe tão cheia de energia apesar da vida confinada a cuidar do filho com deficiência profunda a precisar de tudo. Mãe coragem! Mãe que já sobrava tão pouco para ele, a não ser em promessas do recheio da farta biblioteca. Ele. Ele. Como se desenvolveu assim? Narcisista?! A inveja do irmão, inerte, inumano, os gritos dilacerantes, o cansaço de todos, o afastamento da família, dos tios, dos primos. Não quero atender o telefone, atende tu, diz que não posso. De menino de recados passou a odiar o trim-trim estridente e sem interesse! A família afastou-se daquela mulher politizada com uma carga imensa de responsabilidade. Enquanto vigiava o filho dependente, lia, lia, lia livros de grande envergadura literária e científica! Mãe! És tão culta, mas não tens espaço para me amares demoradamente. Em criança fora criado nos ínterins de uma vida de excessos e faltas. O pai era exigente com o filho capaz - rapaz. Só o avô, lá na aldeia, o tratava como gente miúda. É de lá que traz memórias de suor, terra molhada, cheiro de ervas, risadas e até bebedeiras - mais tarde levava para lá os amigos de medicina, faziam rodízio pelas festas do Verão do povo, conquistas insipientes de moçoilas ambiciosas e aventureiras. O poiso do avô era o entreposto para a conferência do Borges em Braga, os banhos nas cascatas dos arredores de Aveiro...  A soleira da porta da casa do avô, ainda hoje é guardada em fotografia saudosa. Era lá que se redimia da classe social de origem. Lá pouco importava! A propósito, deixou de falar ao João, companheiro de tertúlias e festaços. Mal se lembra porquê!

O doutor tinha outras explicações para a sua direitice. As namoradas das ciências sociais, no tempo da faculdade, que dormiram com os cantores brasileiros...como poderia considerá-las dignas?! Como não se revoltar torturando-as com a sua viragem para o lado direito da política, que elas designavam de fascista?! Não era fascista, era ressentido, despeitado e frágil. Temia ser ignorado, aureolava-se de atrevido para ser notado! Vejamos bem! Por uma questão de economia de identidade tornou-se num impreterível conservador nos costumes, num liberal na economia e recentemente piscava o olho ao monarquismo! Complexo? Sim, era ele! Nos interstícios da vida, prevaricava espraiando a sua alma de artista. Dotado para as artes da escrita, o doutorzinho tivera grandes problemas como interno de medicina. Era arrogante, sem empatia, grosseiro mesmo! A patologia clínica, foi a solução! Ficou radiante quando descobriu a sua vocação conciliatória: mal podia imaginar-se um fracasso familiar. Inteligente, progrediu na área da investigação, criou empresas, impôs-se na direção de laboratórios. Porém, sem pé de meia familiar, teve que se contentar com a estabilidade do Estado.

Com os diabos, ainda há outra razão na cabecinha endoutada: o Porto, a cidade mais liberal e burguesa do país; a aristocracia do Porto palmihada a muito custo pelo ascensor social. Essa era uma grande matriz da sua visão do mundo e de si mesmo. Projetava-se de tal forma na espuma da fina-flor que postava tiradas deceptivas aos "parvenus", ou respirava de alívio quando, em pandemia, as ruas da cidade que conquistara, comprando casa recentemente, se livrava do bulício das gentes populares. Adorava que o tratassem por doutor, com reverência; respondia como um doutor bonzinho e muito acessível - um papelaço!

Seguiu as convenções e conveniências. Casou, teve filhos, fez especializações, foi professor universitário, dirigiu e teve empresas, fez férias convencionais! O escritor adormeceu e adoeceu.

Insistiu o mais que pôde na educação dos filhos e na relação com eles! Foi infiel à mulher algumas vezes, mas com muito cuidado! Divorciaram-se. Ele, pleno de certeza que nada mais na vida valeria tanto quanto o amor dos filhos, disputou-os agressivamente com a ex. Ela capitulou. Ele sentiu-se ganhador, embora não o pudesse confessar a ninguém, por vergonha, mas nunca esteve tão inspirado na escrita como quando ela se finou. Escrevia artigos para jornais, mas o seu estilo provocador era faca de dois gumes. Até que uns inimigos de estimação o começaram a perseguir nos comentários dos media, odiosos! E toda a família o socorria: pai, filhos - uma aflição!

Tentou escrever ficção, mas ficou apavorado com a falta de qualidade percebida: tem um estilo inconfundível, mas tão pouco para dizer - pensa! Não conta a ninguém o que lhe vai na alma! Nem à psicanalista com quem namoriscou. Mas desconfia que é demasiado banal: Dom Juan na Internet; a atração física demasiado intensa!...

Faz de conta que aceita a vida como ela se lhe apresenta. Foi iniciado em aceitação bem precocemente! Falta-lhe empatia! Falta-lhe simpatia! Adquiriu alguma no simulador social! Bajula com imensa arte quem lhe está acima, deixa-se mimar por quem considera abaixo de si, sacudindo o efeito, como quem diz: "não é preciso". Mente! Defende a aristocracia como se a ela pertencesse! Mente! Mente! E pouco escreve! O seu estilo, claro, irónico, culto e também prático, aguarda por melhores dias para se expressar!

O que ele nunca percebeu foi a dualidade, os paradoxos que se lhe impõem sobre a sua própria natureza. Rebelde?! Conformista? Artista?! Aventureiro?! Convencional?!

Não se conseguiu inventar num formato estável! Ele é apenas: editável!


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