As Duas Cantoras
Matu pediu para ser recebida. Queria um mediador para informar a escola da sua situação. E a conversa fluiu com Matu acelerando para uma inundação por enxurrada...a mãe estava divorciada e não podia trabalhar porque tinha fibromialgia; ela, Matu, padecia de depressão grave há muitos anos. Para além de se queixar do antidepressivo antiquado, que a punha desmesurada e com ritmos de réptil ao sol, informou que não conseguia frequentemente sair de casa, dramatizando assim: deslocou penosamente a mão até perto do rosto do mediador como a "tocar o vidro da janela do quarto, a querer ocupar o meu lugar na vida lá fora, mas sem que a doença o permita".
Matu, já não era criança. A sua idade rondaria os 17 ou 18 anos. Pedia compreensão para a sua situação, pois iria faltar muito às aulas do curso profissional. E faltou. Quando vinha, agendava uma conversinha com o mediador. Parecia gostar de lhe contar os seus lúgubres dias: tinham, mãe e filha, que encomendar tudo online e receber em casa as compras. Viviam da baixa da mãe; o pai pouco ajudava. E contava mais "uns trocos".
Até que um dia, após alguns meses de faltas à escola, já em abandono, marcou uma sessão de mediação. Estava muito mais magra, bem maquilhada e trazia um grande sorriso de felicidade e palavras de extrema gratidão pela ajuda recebida do mediador. Ofereceu-lhe o disco que acabara de gravar e tinha vários meses de digressões feitas pelas festas das aldeias de Portugal. Fora selecionada em concurso de discográficas. "E como conseguiste sair de casa?" Balbuciava, incrédulo, o mediador. Tudo se resolvera, a depressão desaparecera. "Como te deslocavas e com quem?", persistia de olhos arregalados o inquisidor; era com a mãe, que a transportava de carro e a seguia sempre, para acompanhar a sua carreira! Deixou na secretária uma carta de bom papel, recheada por um postalzinho de carinhosos bonecos mercantis, com palavras de gratidão e um pequeno coração em ouro para que "lembrasse para sempre" a sua aluna Matu.
O mediador ficou atónito, mal se defendeu que não podia receber prendas...Já em casa, pôde ouvir uma bela voz, afinada, a cantar canções num estilo no qual, enfim, não investiria. Nunca mais ouviu falar dela, mas a vizinha do 5º esquerdo do mediador, fora aliciada para o mesmo tipo de concursos, alguns também na TV - que esta era filha de músico importante - e lá lhe permitiam o acesso a lugares elegíveis. Destruiu imenso património para subsidiar a "carreira", quase pegou fogo ao cabelo com mudanças de cor semanais; abandonou a escola. Num ato de retaliação familiar foi enviada para o país de leste onde vivia a família alargada. Voltou passados uns anos com duas crianças, pediu financiamento à mãe; nunca trabalhou fora. Ainda canta, às vezes, enquanto faz as lides domésticas, enlouquecendo a vizinhança com a sua voz estridente de matrona desafinada, que não saiu afinal à avó, ilustre cantora de ópera. Nem sempre filho de peixe sabe nadar, para azar do agraciado mediador da Matu!
Malditas fábricas de sonhos despudoradas!