Conformação
A carreira na marinha, o casamento, a paternidade. Comprara casa. Vários carros para a família. Às vezes visitava os pais na Guarda. Estava tudo certo!
A mulher começara a ensaiar um coro de garotos na autarquia. Por brincadeira inscreviam-se nos festivais nacionais, depois nos europeus, com originais. Começaram a ganhar. Ela não era profissional de música: os poemas eram deploráveis, mas ficava bem no papel e tornava-se famosa na região. Lembrara-se de fazer aquilo e agora estava num crescendo de fama e reconhecimento. A autarquia rejubilava. Ela era convidada como anfitriã em eventos da Câmara... Os filhos participavam...
O marinheiro aparecia de vez em quando no meio do público. Esboçava o seu sorriso enigmático entre o embevecido e o envergonhado....receava mostrar, a quem o visse, as dúvidas que o assaltavam...mas pelos filhos só sabia sentir orgulho.
A mulher, de tão entusiasmada, inscreveu-se na sociedade de autores e abriu um canal de marketing no FB, bem misturado com apontamentos da vida pessoal, como via fazer a influencers. Até quando o cabelo caiu, se promoveu em festivais temáticos. Se precisava de óculos ou de uma mala de viagem, fazia a publicidade respetiva na sua página pessoal. Mas o marinheiro já pouco vinha a casa - só para ver os filhos. Aguentava estoicamente a dupla estória da sua família!
Fora num dia solarengo, após uma festarola da Câmara que a mulher do vereador o abordara. Contou-lhe da investigação que fizera ao marido, e ele, já em casa, teve o mesmo procedimento com a esposa. Com provas irrefutáveis, abordou-a. "Era tudo mentira, inveja, má interpretação"! O marinheiro era generoso, não queria desvios na sua vida familiar, deixou o aviso e prosseguiu como se nada se tivesse passado. Quase. Até quando, na mala dela, viu os recibos do hotel. Cruzou datas. Vésperas de festival. Ela vencera. Apercebeu-me dos métodos da esposa. Falou com ela. Estava por um fio a relação. A jubilada prometeu!
Das múltiplas lojas de pronto-a-vestir que o convenceu a lançar, aproveitando a sua recente fama...nenhuma vingava... O marinheiro, um dia, resolveu telefonar para os números mais frequentes da clientela. Um deles era de um homem que se desfez em desculpas e moralismos.. "não sabia! Ela dissera-lhe que fora abandonada pelo marido que partira para o mar largo; ajudara-a financeiramente". Os dois homens sentiram uma espécie de empatia na conjugação dos seus destinos.
Falou com ela. Negou tudo! Falou com os filhos, à mesa, na presença dela. Negou tudo! Os filhos tomaram o partido da mãe, mas perceberam o pai. Entristeceram! Ele saiu de casa com a desculpa do trabalho em Lisboa. Fazia visitas surpresa à casa de família. Era dele! Fora ele que a pagara! Ela não podia comprar casa, ainda por cima agora a tratar de um cancro. Ele deixou ficar tudo assim, excepto vingar-se com namoros que nada significavam para ele. Acreditava que a ex se arrependeria, mas não lhe poderia perdoar. Pensava nos dias dela, entre os tratamentos, a vida familiar e os ensaios e festivais com as crianças. Na sua mente não cabia a possibilidade dela ter vida própria: afetiva ou sexual. Teve que ser ela a pedir o divórcio e ficou com a casa, recheada com os filhos.
Ele não ficou deprimido! Não sabia o que isso era. Após a reforma antecipada tornou-se workaholic numa empresa privada. Namoriscou como quem petisca, abandonando as vítimas com desrespeito, sem explicação...fazia numerosos jantares e festarolas com os camaradas e colegas de trabalho. Idolatrou os filhos, bajulando-os com aquisições caras. Não voltaria a amar mulher alguma!