Mentes Criminosas em Sintra
Gorgi pendula a perna, impaciente. A sua vida atual, em modo simplex, consiste em cuidar da filha púbere e apoiar a mais crescida, embora já autónoma. Fica hiperconsciente do tempo a passar. E não está a alcançar metas; nada bule! Preocupa-se!
Já sentiu uma atípica calma, que no início estranhou, mas depois saboreou, até o tédio chegar. Finalmente, espreitou o site de encontros e decidiu agir.
Dr. Sueli embrenha-se em leituras simultâneas de géneros variados- deixa-se encantar. Relê os livros da sua biblioteca e ainda passa pelo alfarrabista; trabalha em semanas alternadas no laboratório de análises clínicas e está a ficar ansioso por "something we call love".
Brincou aqui e ali nas redes sociais, mas enjoou! Até que surgiu Ela.
Com os olhos amendoados, como o seduz! Na verdade, é muito parecida, na foto de perfil, com uma ex. namorada. Sente uma saudade viciada. Pensa telefonar à Ana, mas resiste: não quer explicar-se.
Hoje é passado!
E nesse passado investiu em Gorgi, que de imediato o encantou com o seu fraseado quente e musical, a sua autopromoção- que o fazia rir entredentes-, o seu desafio imediato para uma aventura na casa da floresta, lá para o Norte! Era o que estava a precisar: uma fuga astuta ao tédio da pandemia, aos contactos infrutíferos. Esta mulher, ele queria conhecer!, até porque para além da conversa infinita que mantinha com ela, não tinha ainda apreciado o mito sexual das brasileiras! Climático seria ainda poder exibir a conquista amorosa para Suse e outras moças, que sabia espreitarem, furtivas, a sua página.
Tudo aconteceu como no desejo! Lançaram-se num vôo e ficaram suspensos. Foram contando as suas novelas pessoais como estrategas de marketing e depois embutiram a fantasia amorosa nas respetivas realidades quotidianas. Ela era interessante. Ele também, mas repetitivo; frágil o suficiente na sua imensa arrogância! Gorgi percebeu perfeitamente como dar-lhe corda até ao nó!
A pandemia e seus negócios correlativos, alimentavam-lhes a ambição! Pensavam em possibilidades, mas logo os negócios apresentavam uma complexidade burocrática, porque regulados pelo Estado, que os fazia desistir. Queriam dinheiro mais fácil!
Cada um vivia em casa pequena, sem possibilidade de juntar as duas famílias: os dois tinham prole. A separação era até ao jeito de Dr Sueli, mas Gorgi não queria apenas passar bons momentos! Tinha outras necessidades e planos!
De moça sempre a rir, passou subtilmente para mãe revoltada com o pai da mais nova! Rico, casado e com outra filha, não satisfazia Gorgi financeiramente - ela que tentara uma indemnização e usara a sua capacidade estratégica para financiar a sua nova vida. Uma vida desnutrida dos mimos de mulher de empresário de sucesso. Com uma depressão e muita comida, desfigurara-se, e ele cedera à mãe da filha. Não era esta a versão que Gorgi narrava a Sueli nos últimos tempos, insistentemente.
Tinha ainda uns negócios de vendas online, mas não chegava!
Dr. Sueli não era abastado como prometia a gama do carro que os levava para uns passeios clandestinos, furando a pandemia!
Foi numa estada no Vimeiro, cheia de simbolismo familiar para ele, que Gorgi, aproveitando a onda de emoção - ao som rude do mar, amenizado pelos salpicos e borbulhar da espuma-, lhe disse em segredo, palavras muito soltas, mas hipnóticas. Repetiu em cadência o que consubstanciava a mensagem que mudaria as suas vidas, ao momento, rudemente pagas com esforços diários.
Nada mais foi, pudicamente, dito sobre o assunto, naquele dia...mas as mensagens seguintes nas redes sociais, os vídeos escolhidos e enviados entre eles, estavam prenhes de subliminaridades.
E provocaram um salto na sorte, encurtaram com magia o tempo e realizaram os seus sonhos: hoje estão a fazer as mudanças no chalé de Sintra, incrustado numa quinta deliciosamente bela! Um conto de fadas da Baviera!
Hoje é passado!
E nos dias seguintes, desse passado recente, para além da substituição progressiva da mobília, mantiveram o mais que puderam a rotina: ela levando a filha à equitação e ao colégio; ele na sua lide de médico, sendo que em breve teria motorista, para aliviar a viagem desgastante. Possivelmente, até deixaria o trabalho no Estado.
Gorgi fez amizade com a mãe da coleguinha da filha, acabada de chegar ao picadeiro, mas com um perfil no FB bem interessante! Seria uma facilitadora de contactos de VIPs para Gorgi e Sueli. A filhota estava deprimida e muda; contratou os serviços de uma psicóloga para a ajudar e uns explicadores. Uma nova amizade vinha a calhar, asseverou!
Foi numa quarta-feira de abril, quando as garotas terminavam as prova de equitação, as mães assistiam embevecidas e Sueli se fizera aparecer, que, repentinamente, a nova amiga mostrou um crachá da polícia judiciária e apertou as algemas nos braços do par de novos ricos de Sintra! Estavam as garotas nos vestiários, tendo sido conduzidas, em estado de ignorância, pelo pai da amiga, que as levou para o "trabalho", "só por um bocadinho". No centro de investigação criminal, as meninas encontraram a psicóloga. Entretiveram- se a jogar nos telemóveis, até a filha de Gorgi ser acompanhada a uma sala de interrogatório com a sua psi.
Quando saíram, a menina foi conduzida por uma assistente social a uma casa de acolhimento até a família do Brasil ou a irmã mais velha a irem buscar.
Há uns meses, a garota tinha ficado por baixo da cama da mãe, querendo brincar às escondidas, mas acabou por ficar espiando curiosa a conversa do casal e ouvira o plano. Na altura, fantasiou que assim se poderia livrar da madrasta, que detestava; pensou que a irmã não seria afetada, pois era pequena, nem o pai por ser super saudável... Depois considerou a ideia como parva, pelo que lhe tinham ensinado na escola e ouvira dizer. Porém, uns dias depois da vacina em casa, foram os três internados: estavam infetados com as novas estirpes. Um de cada vez, foram sucumbindo! Não houve funeral!
A menina então perdeu a fala e só após a intervenção terapêutica revelou à psicóloga o que ouvira, mas, aparentemente, sem ligar isso conscientemente com o sucedido, falando com uma espécie de frieza emocional, um "detachment".
Considerando ter a garota em perigo de vida, pois era ela a única herdeira, a psicóloga informou a PJ. Em breve, uma investigadora infiltrada, usando um perfil falso nas redes sociais, construído à medida, mas com datas falsas, se fez "amiga" da família!