Gorgi Lotte

Gorgi Lotte é conhecida pelo sorriso amplo que lhe vaza dos lábios para o amendoado dos olhos, instalados no inchaço indígeno das pálpebras, e se espraia como um polvo centrífugo pelos cabelos negros, levando-os a alçar madeixas extáticas; os braços sorriem nos gestos redondos e maternos, as pernas cheias participam com repuxões, fazendo-a saltitar. Por fim, os brincos pendulares estremecem e libertam uma vibração erótica para o ambiente - às vezes perfurando a aura de alguma vítima, que logo procura ávida - nariz no ar - a fonte de um perfume infamiliar. Ao sorrir, parece estelar, a baixinha Gorgi, que de quando em vez cresce para o lado de fora do osso e logo rumina em cima da balança uma dieta fatal e o aperto espartilhar de marca Sbelty. Por essas alturas salta à corda, quando nenhuma cria está por perto. A brincadeira já lhe rendeu trilhos de estrias por muitas zonas curvas do corpo, a acrescentar aos remendos das cirurgias da maternidade. Nada que lhe diminua a sensualidade amestiçada, que usa com mestria. Saberes de linhagem!

Vovô era capataz de generais, lá do mato de Minas, e herdara, por via de uma vida de dedicação ao general Tolentino e seu primogénito, umas terras que soubera rentabilizar. Casado com sinhá Briolinda, avó de Gorgi, o ex capataz vivia em família com a mulher e uma criadagem mestiça que não sabia ao certo quanto era de sua fornagem! "Vovó acolhera eles", benevolente. Mesmo o pai de Gorgi, não se parecia com a sua mãe nem com o seu pai, mas sinhá Brió mandaria encomendar quem se atrevesse a duvidar. Em pequena, Gorgi passava temporadas durante as férias escolares, com os avós na chácara do Tapiá Azul e lá se endiabrava com a miudagem dos criados e dos boiadeiros. Voltava a casa picada, arranhada, molhada, malcheirosa de ervas com suor, mas feliz! Esse esplendor que hoje a habita, e dela brota, lá o foi  buscar: essa miscigenação da alma, não veio da mãe, não!, pequena burguesa de São Paulo...nem do pai, que pouco via, em particular, quando andou ocupado a expandir o negócio de restauração, anos a fio. Ainda assim, mesmo divorciado, não deixou de acompanhar a formação dos filhos, todos da mesma mulher! E outra não teve. Seu amor foi único, avisado que viera de sua casa paterna, onde a mãe o xingava para que fosse respeitador dji mulhé! E assim fez! Toda a sua malícia era empregue na expansão dos negócios, mafientos, e preparava os filhos para saberem do ofício que lhes deixaria por herança. Mas Gorgi foi escapando!... O colégio de madre Antônia, as férias com os avós, as viagens com os amigos...Captou o essencial dos negócios e usou sempre essas mais valias com sabedoria a fazer futuro em família. Três garotos logo nos vintes e outra quase aos quarentas. Era uma estratega impiedosa na vida e nas micro empresas que criava e lhe garantiam "estilo de vida de mulher". Planeava com régua e esquadro e muitas vezes ganhava. Herdou a ambição do pai, o seu foco, a sua grit de vencer todas as guerras!...

"Seu padre, mi perdôi, mais tenho uma altercação para lhe confiá" - ouvimos Gorgi dizer ao padre Medinas, numa das suas visitas a SAMPA -  "é que eu sabia que não djevia, por um lado, mais foi mais fortxi do qui eu! Estava precisando relançá mia vida apóis o djivórcio do Siuva...e eli estava mesmo à mão, vulneráveu, rico, muito rico! Mia girl mais nóvinha veio ao mundo assim, pára servi de amparo aos irmão e a mi mesma, confesso ao seôr! Confesso sim, que a idadji deli, tão tenra, mi cómóveu ....fizs deli pai tão cedo para os hábitos dos portuguesis. O seu padre sabia?! Português quase não tem filho e se tem, faiz eli tardji. Mais arrependimento não mi vai matá, não! A menina está felizs, todos amam ela! Foi bem feito, mas foi golpi! O pissicólogo vai ajudando. Ela já mi confrontou, - percebeu -, é bem isperta! Bem, o que está feito, feito está! Agora, com quase todos os meninos criados, preciso pensar meu futuro, estou cursando na faculdadji para mais independência!... E quem sabi não encontro o amô tardjio, verdadêro, com um seôr bem conservado...e rico, né?!" E Gorgi sorriu! Amplamente!

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