Marca d´ Água
É! Hoje faço tantos anos! Para o próximo ano, vou fazer um reset. Estou a pensar retomar nos quarentas. É uma boa idade para recomeçar! Posso levar a harmonia à maturidade e à contabilidade de vida um balanço de qualidades adquiridas e de trapalhadas irrepetíveis, agora que as sei.
Hoje não pude festejar os meus anos. Trabalhei intensamente! Aceito! Mas muitas vezes acertei em sábados de aleluia e páscoas, até no nascimento assim foi. Ah, e sou Touro, só por duas horas. Quase Carneiro. Não percebo muito de constelações preditivas, mas preocupou-me aquela frase fatalista da avó de negro...
A avó enviuvou mal casou e nunca se separou do filho - o meu pai - até à sua morte aos oitenta e quatro anos, em que, puf, deixou esta vida num instante, sem dar de si! A avó de negro nunca saía à rua por motivos fúteis e a sua longa clausura voluntária, após a viuvez, traduziu-se numa aprendizagem dos sinais discretos e intersticiais da vida. Ela parecia adivinhar e prognosticar com segurança situações futuras, reconhecia motores a distância, sabia das nossas intenções antes de nós mesmos e toda a família alargada fazia fila para visitá-la, por pretexto de reencontros entre todos, mas também respeito medroso da sua língua afiada. A nossa casa parecia um local de peregrinação!
A avó de negro viu o meu destino sem o prémio da felicidade!
Hoje que faço muitos anos, não sei dar-lhe razão. Vivi ilusões que tardaram em se revelar e me fizeram perder tempo! Mas com esse tempo, se repetisse mais do que de bom foi, também não adiantaria muito! O melhor foi pontual, mas tão numinoso, que o tempo foi fintado, e uma participação na totalidade ocorreu! Portanto, não seria mais que tornaria melhor o que foi excelente.
Está certo. Está bem! Só acho que a contagem retomada vinte anos atrás, burila o meu cristal de vida um pouco mais do que o peso do número decano seguinte. Permitir-me-ei essa pequena loucura. Acho que tenho uns créditos em matéria de avaria mental! Vou gastá-los!
A minha família criou-me uma marca de ambição de aprender. A isso, só dei continuidade! As outras qualidades e defeitos vieram da época: os sonhos do vinte cinco de abril ressoaram na garota púbere. As ideias radicais sobre a autorrealização da mulher fora dos trâmites convencionais; a mulher forte que não precisa de constituir família; a mulher solta no mundo, foram marcas fundas e exageradas que condicionaram as minhas decisões. E houve erros! Os piores!
E o tempo passou muito entretido a cumprir compromissos sociais, financeiros. De repente, mas que idade tenho eu?! Oh, não!!!!
Agora, só se pode aceitar, tudo! E brincar ao reset temporal!
Ou se parte, ou se vê partir - já me avisara o meu pai, que está cá para contar as histórias que viveu com tantos que já não estão. Eu acho que ele está contente com a sua sorte, apesar das limitações do corpo, a mente está cada vez melhor. A mãe já partiu, foi tão rápido que mal houve tempo para a despedida.
Percebi que a minha vida é convergente com a dos meus pais. Cada vez temos uma idade mais próxima. Cada vez eles eram menos tontos do que eu pensava. Bem pelo contrário! Dou por mim a tentar o impossível: explicar aos mais novos que somos do mesmo tempo! Que no milénio anterior, éramos do mesmo tempo. Que antes de Cristo, éramos nós! E assim por diante! Mas sei que só se aprende isto quando se está próximo de não mais valer a pena! Um desengano que só nos é permitido na chaise longue da vida com um belo Porto Croft. A música, essa pode ser jazzística, ou então os Dire Straits, por quem tenho panca! Ah, panca! A gíria de adolescente! Que fantástica idade! Foi devorador, foi alucinante, o tempo adolescente! Apaixonei-me por essa idade e jurei trabalhar com jovens, e assim fiz, e fui feliz todos os dias! Que idade maravilhosa!
Tive amigos, mais amigas, alguns desde, outros até! Uma coisa é certa: como é mais difícil nos dias de hoje fazer novos amigos! Gostava tanto da amizade, da minha visão romântica da amizade! Não me decepcionou! já o amor romântico, é mesmo o quê?! Ah sim, isso! Dah!
Já que não tive filhos e talvez tenha plantado algo verdejante, sobra-me algum desgosto por não deixar obra!
Toda a minha vida experimentei atividades diversas. Em algumas delas, pessoas gentis me entusiasmavam a expor, publicar e afins. Nunca me interessei por isso, nem me achei de mérito! Umas coisas soltas. Uma peça da minha autoria no Maria Matos, uma plataforma de e-learning, uns retratos , umas composições musicais - aliás miseráveis -, uns textos de blogue, umas conferências, umas entrevistas televisivas. Umas coisitas! Talvez mais alguma que não me lembre. Ah, sim! umas fórmulas para resolver sudoku, e um fractal: descobri um fractal. Enfim! Minudências!
Sou uma idealista, vivo no éter e fora do corpo a maior parte do tempo: passo a vida a imaginar soluções para os problemas do mundo e não me acanho, desde pequenas acessibilidades para quem tem infortúnios, até grandes causas! Voo e caio e repito tudo, e gosto!
Que valeu a minha vida?! Nem sei! Pode ser uma ténue marca de água, que está certo!