Noites Vãs

Estou sentado à minha secretária. A cismar. A gata do jardim expira a sofreguidão em gritos lúbricos. A memória asperge o champanhe do meu casamento: clap! Fchchch! Não me demoro neste flash. Outro esguicho traz-me a lágrima que turvou a primeira vez que vi o meu filho em aromas de éter.

Inspiro longamente - o ar cheira a bactérias em decomposição das folhas mortas da begónia aqui à frente. Tenho a janela do quarto escancarada. Está um friozinho de primavera marota! Retorno ao vegetal de eleição, agora orlado de prata lunar. Tenho tido longas conversas com este meu "pé de laranja-lima", o meu mindinho. Recebo conselhos. Mas não sou um romântico. Fecho a janela porque está frio e quebro a conversa onde calha, deixando a planta a falar sozinha, ou talvez com a gata.

Faço voz paterna para trazer os meus podengos prá mesa. Fracasso. Segue-se um ronco hitleriano. Por magia, tenho num instante, a mesa plena. Olho para o design dos dois rostos. Saíram à mãe! Nem piam! Nem para pedir desculpa ao pai pela demora. Sorvedouros! De olhos na teia, permutam ecrãs da TV e dos telemóveis...Ponho-me a folhear o jornal, para não sair da zona da mediania emocional. 

Penso na carne dela, macia. O olhar em chispas. Já estou habituado. Acomodei-me. Bem diferente da mãe deles! 

A gata berra, as paredes coam mal. Que merda! Dou-lhe comida e pago o veterinário. Ela prenda-me com o alarme dos infernos. 

Franzo o sobrolho, passo a mão devagar pelo rosto, como quem está cansado. Ainda tenho que telefonar aos meus pais. A pandemia tornou-os mais sensíveis. Eu sou frio, mas com eles disfarço.

Penso nela outra vez, mas logo o pensamento salta para a outra. Que será feito dela? Poderia ter sido de outro modo? Talvez, mas sou radical. Nem soube o sabor dos seus beijos. Era maluquinha por mim. Desvalorizou-se, portanto, no mercado do amor. Larguei-a. Para mais, resolveu fazer coro com os infelizes que me querem no pedestal. Onde se foi meter, coitada! Requiem. Imagino-a a chorar baba e ranho e a gastar uma pequena fortuna no analista. Até me dá vontade de rir, enternecido! 

Os estupores dos meus filhos, ignoram-me. Estão mudos e com o pensamento longe! Comem que nem alarves! Vou dar-lhe no chocolatinho que comprei hoje no supermercado. Ofereço umas quadras aos mudos à minha frente; acenam que não. Levantou-se o primeiro e lavou a sua loiça. Depois, o segundo imitou-o. Fico eu aqui a cismar sobre o que vou ler hoje. 

Os dias são assim! Não fora os jogos eróticos da minha garota e a sedução velada da professora de Contemporânea, isto era uma seca! Talvez vá ver um filme. Hoje estou introspetivo e ainda posso sossobrar a mais flashes do passado. Vou ver aquela série na Netflix, metido na cama para me afundar assim que redundar o langor. 

A gata já se calou. Antigamente estaria eu feliz à janela a fumar um belo charuto. Vida de merda! Ou, por outro lado, é para que ela fique por este corpinho muito tempo, que me privo da jóia. 

Estou farto de conjecturar. O comando? Amanhã a empregada lava a minha loiça do jantar. Já não tenho de dar o exemplo a ninguém. Sou um pai livre da paternidade fofinha. Caraças! veio-me a mãe deles à cabeça! Arreda! O comando, a almofada. Que se lixe tudo! Venha o Gambito!

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