O Estranho Caso de Mini Maria

Ela estava imersa num espesso banho de espuma. O frisson das mensagens levou-a a mergulhar a cabeça na água tépida com sais de morango e fruta selvagem. O correio ia e vinha à velocidade do electrão, pleno de sábias asserções. Era ver qual dos amantes virtuais se candidatava a um qualquer Nobel, ou a todos. Por isso, um belo dia, quando ele sem nem porquê, virou a página da modernidade líquida, ela escorregou borda fora com a banheira e tudo! Estatelou-se na cozinha do homem, mas sem ruído, em cheio sobre o tapete, desnuda, no charco absorvido pelas malhas da tessitura bangladeshiana. Ele nem deu conta e continuou a leitura, mas ela, assustadíssima, puxou a banheirinha, início de século XX, a cheirar a sabão Clarim, para debaixo do móvel vintage dos copos, e escondeu-se sob a ruga do tapete, que lhe serviu de gruta, enquanto se refazia da situação.
O homem dos seus amores perdidos, estava ali imóvel, atento à leitura, resmungava entredentes pontualmente, dava risadinhas como um tonto. Mas o surpreendente era o seu tamanho gigante! Aliás, ela era agora do nível dos pés do armário chique.
A sério que pensou três vezes antes de contar uma história destas, já batida, aqui para vós. Mas decidiu que sim, uma vez que era a sua. O que poderia fazer?! Não era uma Alice, nem um Gulliver. Vidinha comum esta, hem?!
Retomando a estória já começada, Mini Maria viu-se nos dias seguintes a rasgar tecidos, umas pontinhas de nada, para fazer umas vestes romanas; viu-se a comer migalhas e a passarinhar à toa pela casa quando vazia e à noite, fazia-lhe uma ronda furtiva, ao som dos foles ofegantes dos três homens, a distorcer o espaço do medo que a tomava, ritmadamente. Apanhou-se a escutar toda a vida da casa, desde o monstro do aspirador, aos telefonemas de cada um, às canções indianas da empregada, aos silêncios sem fim d'ele. Temeu por cão ou gato, mas lembrou-se que a família não tem animais. Receou que a pisassem! A mandassem pela sanita ou janela fora! Ai, se fora para o caixote do lixo?!!! Como avisar a sua família se nem os números de telefone sabia de cor? Onde estava o seu telemóvel agora? A sua identificação? De que iria viver? Se ficasse doente, como iria ao hospital?! O mundo ficou, repentinamente, uma ameaça!
Todos os dias o via. Bem, quase todos. Faria banco nos outros? Banquetear-se-ia com uma bela mulher em algum apartamento pela cidade? Por norma, os filhos mal falavam um com o outro, ou com o pai e a casa tinha um silêncio de raras moscas.
Arranjou aposentos junto à planta da janela, no rebordo do vaso, sob a folhagem. Montou uma complexa escada de cordas e cordões por trás da secretária dele. Era o local que lhe era mais favorável! De lá ouvia os passarinhos da árvore da janela sempre aberta e cheirava o aroma da terra...fez mesmo uma pequena horta com algumas sementes e armazenou umas migalhas gigantes, para momentos de falta! Mas este sítio era especial, pois gostava de seguir os progressos da escrita do homem da sua vida e espreitar as suas pesquisas. Evitava as mensagens de D. Juan, para não tornar a sua vida mais miserável.
Enquanto ele dormia, por vezes, aproximava-se da almofada, ouvia-o - monstro-, a ressonar assustadoramente, a uivar, a trovoar! Tentava entretanto pousar uma mensagem bonita no seu ouvido, inocentado pelo dormir, que o tornasse melhor, que o ajudasse a desbloquear na escrita.
Agora, que lhe era prisioneira,- pois como poderia fugir aquele destino?!- esperaria poder ter alguma influência sobre a sua vontade para que ele brilhasse num texto que lhe honrasse a espera e a persistência.
Como fazer para se libertar do tormento? Mesmo depois de ele se tornar o escritor que é em potência e a libertar moralmente, como poderá sair da sua sina, deste degredo? Magica em como deixar-lhe uma mensagem feita à escala, explicando o sucedido. E se ele se exaltar? se sentir invadido? se a quiser espezinhar ou deitar fora? Com certeza não terá um elixir para lhe dar! Será que a devolve à família? Credo! inútil, dependente, em permanente risco! Uma dor de cabeça para a família!
E como trabalharia?
Pô-la-iam numa gaiola? Escondê-la-iam da comunidade?
Ouviriam, se gritasse? A sua voz era tão débil, vinda daqueles pulmões pequeninos! Só servia para segredar ao ouvido e agarrar-se como carrapato ao sobrinho pequeno! Ele iria divertir-se!
Nem queria mais pensar na sua miséria!
Aonde o amor a levara! Um amor em estado líquido! Ele virou a folha e deitou fora o bebé com a água do banho.
Sei bem que de nada vale contar uma história banal para a humanidade, do miolo da memória coletiva e reescrita em contos infantis à exaustão!
Mas quem não se sente não é filho de boa gente e há alturas que um ser se sente tão só, nu e desamparado como veio ao mundo! E então chora! E depois conta a estória a qualquer totó que apanhe a jeito!

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