Podia ser hoje
Podia ser hoje que me convidavas para um passeio no teu carro diferenciado. Iríamos a um local apresentado com ar de tenho-uma-surpresa-para-ti, onde iria ouvir as tuas histórias intermináveis e cansativas e mesmo que eu te amasse, iria maçar-me na mesma, mas disfarçar com um sorriso complacente e deixar-te usufruir do meu tempo e da minha atenção plena! Tudo por amor. E iríamos olhar as rochas e as ondas caprichosas, mas ainda assim, as mesmas que posso recordar ou imaginar sem ter de gastar um dia a ouvir-te contá-las e forçar opinião. Posso imaginar uns beijinhos, módicos, o hálito sofrível; a dureza das escadas onde nos sentamos, a textura da areia, a aspereza dos teus caracóis rentes, o receio de ver as tuas rugas, os vincos de expressão, tão marcados - assim tão perto-, o vómito disfarçado que me daria o teu olhar repousado no meu, sem expressão. Vamos aonde?! Que perfume usas?
Embora! Vamos embora! Não seria corajosa o suficiente e preferiria um café numa estação da alma, como o D. Quixote na Azóia, ou o Muchaxo, no Guincho, ou outro onde as memórias fossem tantas que não houvesse perigo de me surpreenderes com alguma maldade! Estaria exausta da luz, da conversa, da porcaria do carro, da tua vaidade! Estaria carente do meu aquário e cheia de saudades de fulano, beltrano, uns tantos mas poucos amigos e amigas que não me cansam e onde posso fluir e ser sempre o que sou, sendo que acordámos há longa data os limites, os meus, os nossos. Que bom seria dormitar num ombro seguro! Em vez disso, tenho-te aqui, a exigir de mim o que não sou, só porque nos encontrámos em estratos da existência que se tocaram pontualmente. Estender tal concatenagem tornou-se perigoso. Temos que admitir que te amo no éter. Não me honra a tua história interesseira, o teu carro galante, os passeios intelectualizados. Também não vou realizar as tuas fantasias absurdas de mulher primitiva mais uns pozinhos de consumismo! Não me interessa a sedução!
O que importa é não estar nos teus braços agora, esgotada e incompreendida. Ainda bem que é outra que está nesse lugar! Talvez tenha outras defesas.
Por mim, está ótimo assim, mas gosto de pensar como é bom não estar aí, contigo, mas sim no outro lugar, onde te amar de amigos, era a plenitude!