Tirar o Retrato

Tirar o retrato era sempre uma comoção, pelo que ficámos com esses momentos bem guardados no cofre da memória.

Naquele dia, estávamos com o pai. Não me lembro das mulheres, nem da mãe, nem da avó - deviam ter ido ao médico. O pai, machista e pouco habituado a tratar de nós, deu-nos independência para cuidamos da nossa imagem. Talvez as roupas tenham sido escolhidas previamente pela mãe - certamente que sim, no meu caso um vestido lindo de veludo vermelho com florzinhas brancas dispostas em colar - mas o penteado estava por nossa conta. Eu tinha oito anos e o mano, cinco. Ele tinha uma cara de anjo - melhor, de anjinho - doce e dependente. Fiz uma última verificação, após ter desenriçado o meu complicado cabelo; o mano penteava vertiginosamente só a parte que via ao espelho: a frente, portanto! E repetia, repetia, com o pente metálico, acamando a franginha a fujir à polícia. O pai lá decidiu que chegava, não antes de reparar no meio penteado do mais pequeno. Toca de rir e dar-lhe um retoque final. O rapaz tinha o cabelo curto, embora com a rebeldia da boa cêpa de família!

Fomos de autocarro, muito orgulhosos de sairmos com o pai, o que raramente acontecia. Ele era um sujeito interessante e gostava de puxar por nós sempre a ensinar-nos a observar e contava estórias da história ou do mundo, sobre o que quer que fosse. Certamente não nos deixaria distrair com o fluir do tempo e a correria da paisagem nas janelas: o cinema do autocarro.

Após uma significativa ginástica e equilibrismo até descer as escadas do veículo, chegámos às ruas com movimento complexo de carros, autocarros, elétricos, elevadores, bulício, cheiro a bacalhau, pregões, pedintes, um mundo a fervilhar...

Uma porta muito alta com altos relevos. É aqui, decidiu o pai. Subimos num elevador máquina maluca, a gemer e a relinchar, contando os andares que víamos descer cadenciadamente por detrás das grades em Xis, que nos protegiam de ficar decepados, ouvindo as comuns advertências dos perigos potenciais - era uma arte de família, antecipar todos os perigos de qualquer situação, uma família de fóbicos e evitantes...

Após o safanão do monstro, eu sacava em bicos de pés a opinião ao espelho do elevador, que era positiva e olhava para o mano achando-o uma ternura angélica.

O fotógrafo era um encenador e compunha as nossas expressões e maneirismos estáticos com impaciência, o que despertava alguma resistência em nós e pouca vontade de sorrir. Até porque tirar retratos não era coisa que se fizesse todos os dias e não se poderia voltar atrás, sofrendo horrores durante um ano inteiro se o cabelo ficasse espetado ou o sorriso a desfazer-se, desbotado. Também nada havia de cómico ou confortável para uns tímidos que éramos! Desesperado, o fotógrafo sugeria um "ééé" duradouro! Eu esperava que ele dissesse "olha o passarinho", que me iria soltar um riso convulsivo, mas os fotógrafos modernaços desprezavam esta sua caricatura! Ainda bem que a máquina já não explodia como nós filmes do Charlie Chaplin! 

A coleção de fotos de amostra que o fotógrafo exibia na montra, com orgulho, produzia emoções dúbias. Por um lado, quem era aquela gente?! Era gente a sério, ou amigos cúmplices do fotógrafo?! Porque tinham sido selecionados? Será que nós teríamos essa honra? Mas quereríamos ficar de amostra para outra gente? Imagina se os colegas da escola também lá fossem? Poderiam começar a gozar! O puxão gentil da mão paterna acabava com as especulações e logo toda a atenção era pouca para caminhar na cidade, sem ser atropelado, sem saltar de susto com alguma buzinadela ou som brusco. A vista da calçada, do alcatrão, com os seus buracos críticos; as pernas dos transeuntes, os sacos que transportavam, eram o mundo visual ao nosso alcance, quando em multidão. Quando mais desanuviado, podíamos apreciar a bela arquitetura lisboeta, às vezes palacetes, estátuas, ou ao longe o castelo, o Cristo Rei, a ponte Salazar... Que fantástico mundo!

Regressávamos de alma plena, cheios de estímulo e com muitas coisas para contar à mãe. A avó metia-se na conversa, que não era com ela!

Depois ficávamos umas semanas a aguardar por receber as fotos e ver se ficámos bonitos, ou, pelo menos, se estávamos imunes à vergonha, pois seria o retrato oficial para a escola, passe do autocarro, para tudo!

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