Um Limiar no Lumiar

Quando eu tinha uns cinco anos, a minha mãe começou a trabalhar em artesanato. Na fase de aprendizagem subíamos a um terceiro andar a pé, onde umas senhoras sentadas vestiam bonecas. A instrutora tinha uma bebé. A janela aberta dava para um pátio interior, que eu só conseguia ver em bicos de pés. Durou pouco essa experiência. Ainda me lembro dos odores do prédio, da subida difícil das escadas, do clima feminino da sala atelier. É que o casal faleceu num acidente de ambulância. Só a bebé sobreviveu. Foi a morte mais dramática da minha vida precoce. Lembro-me do mundo desabar: era perseguida pelo paradoxo da situação, pelo ténue fio de ligação ao futuro que representava a criança, pela suspeita de que a morte poderia surpreender, sem dó, nem motivo. Todas as artesãs seguiram com a bebé para o Lumiar. Uma irmã da jovem instrutora, dera seguimento ao seu negócio, ficara com a criança e com as trabalhadoras.

Deste modo passei a acompanhar a mãe numa longa e prazerosa viagem - passeio pelo Lumiar antigo. A Academia de Música de Santa Cecília, de onde se ouviam os trompetes, a porta judia por onde saiam crianças de ar encafuado e olhar no chão para carros impacientes que as sorviam. Os muros cor de rosa velho, ornados de rosinhas, dos Inválidos do Comércio - como me soava mal esse estranho nome, agora que já sabia ler e era uma sábia cursante da primária! Tinha o local por uma espécie de hospício - como o Júlio de Matos! Sugestão dos muros!

Cheirava a cavalo, a estrume. O local estava cheio de quintas já em estado de alguma degradação! O autocarro número um todo se contorcia, como uma senhora desajeitada em salto agulha, na calçada desnivelada.

Já no Lumiar, deambulávamos por um largo de grande movimento com autocarros verdes roncantes, altos, ingleses e os eléctricos que davam àquele local uma marca cosmopolita e apressada! Perto da rua da Dinora, a mocinha em que se transformara a bebé, encontrávamos a loja da retrosaria cheia de agulhas, fitas, rolos de linha de todas as cores e tamanhos, guardados por uma senhora benevolente e risonha, mas muito competente no seu metier. Havia muitas outras artes e ofícios, de aromas próprios, pela rua fora, embora eu ligasse pouco às coisas de homem, como oficinas, pneus, óleos, sapateiros e afins! Fissuras na correnteza da rua principal, que desembocava num colégio cristão, levavam a ruas labirínticas, que por sua vez se desmanchavam em ruínas generosas e nos brindavam com os amplos prados das quintas!

Na casa da Dinora, agora uma menina de escola, havia também a Teresa, a irmã adotiva, que usava rabo de cavalo e era muito crescida - rapariga de liceu! A aproximação da casa era uma emoção gigante pela perspectiva da brincadeira muito divertida. A Tia dava-nos um puré de batata com frango assado que ainda me faz água na boca. Brincávamos com as bonecas - com as nossas, mais choronas e maleáveis do que as do artesanato-, enquanto vigiávamos o mulherio e as suas mil artes, sendo que eu já participava de vez em quando, por gosto, cosendo camisetas, colando cabelos e aventais, armando chapéus. Uma graça!

Fartas, íamos arejar, conviver com algum garoto que por ali passasse, que a rua só tinha adultos e velhos...mas havia uns deambulantes infantis à procura de parceiros, e aí engajávamos em alguma aventura. Ora ali mesmo, ora explorando ruínas ou pátios que pareciam ao abandono!

A calma era imensa, o silêncio profundo. O bulício do largo não chegava ali! Recostávamo-nos em cadeiras vintage e fazíamos a nossa psicanálise... conversávamos sobre a vida. Por vezes ficávamos caladas a usufruir do sol e do silêncio... Outras pendurávamo-nos nos portões e balançávamos como em berços. A Dinora não se lembrava do seu passado e acreditava viver com os pais e a irmã. Eu não falava o que sabia! Éramos amigas!

Era o reino do silêncio, da amizade profunda, da segurança e da fé na humanidade! O bem que me fez esta cura da alma após o trauma agudo da morte! Já éramos garotinhas crescidas. Pensando bem, eu teria menos de cinco anos quando o acidente se deu. Eu e a Dinora não tínhamos tanta diferença de idade!

Sou muito grata por esta experiência de vida e pelo convívio maravilhoso que acontecia entre mim e a mãe durante a viagem até ao atelier, que incluía uma caminhada no campo, a comentar a beleza das flores, umas sacrificadas em inocência para pôr na orelha ou guardar para um jarro; apreciávamos o sol, se o houvesse; cantarolávamos juntas e fazíamos ainda conversas de ocasião! Eu, como se fora crescida!

Só havia um problema: o meu irmão gostava tanto quanto eu do passeio e a mãe só levava um de cada vez! Assim revezávamo-nos, ficando um a choramingar em casa!

Fomos muito felizes no limiar do Lumiar!

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