A Branquinha

Quando eu era pequena, tinha um grupo de amigas na vizinhança e outras que visitava afoitando-me estrada afora, que eram colegas de escola. Mas, um pouco mais nova, ficava apenas pelas ruas adjacentes à minha casa, com as amigas vizinhas e da mesma idade. Menos uma: a Branquinha. A minha mãe fazia um trejeito de boquinha para dizer aquela palavra irritante! Toda ela se lambuzava, como se estivesses em idílio alimentar com alguma guloseima de longa duração no palato. 

Quando perguntei à minha mãe o porquê - um ano ou dois depois do forró ter começado - da nomeação de "branquinha", daquela estranha miúda, esquiva, que não falava nem brincava com ninguém...ela respondeu que eu era carocha e ela era branquinha: era a cor da pele! Enquanto ela se explicava, a minha mente, dilatando o tempo, levantou-se várias questões: estaria a minha mãe a chamar-me de carochinha como na história do João Ratão?!; estaria a desvalorizar-me ao ponto de me comparar às carochas, que eram da família das baratas, portanto asquerosas?!; ou estava a dizer-me que eu era menos bonita do que a garota que nem sol apanhava? Eu, hem?! Que andava, naquela altura, livre que nem um pássaro, fizesse chuva, ou sol de torreira?!

Uns adultos - e naquela época eu não relacionava as coisas- ensinaram e incentivaram a pequenada a cantar, ao mesmo tempo que batia as mãos uma contra outra como no toma-toma: "preto da Guiné lava a cara com café!", repetidamente, até o vizinho negro vir à rua enxotar-nos e, resmungando, nos mandar para casa. Então fugíamos e íamos tocar às campainhas e voltar a fugir no meio de risadas catárticas. Para nós, era a mesma coisa!

Mais tarde, a branquinha tornou-se minha colega do ciclo preparatório e passou a chamar-se Nelinha! As outras amizades desvaneceram-se nos seus horários escolares, novas amizades longínquas e namoricos secretos.

A Nelinha tornou-se a minha melhor amiga durante o tempo escolar entre o atual 3º ciclo e o secundário; a única amiga verdadeira!

Ela tinha muitos complexos por ter as ancas largas, dizia-me, e pena de ser filha única, o que na altura era raro.

Os pais da Nelinha receberam-me muito bem; a mãe chegou mesmo a ser minha amiga também. 

A Nelinha era amiga do Sr. de pele mais escura e da sua família e eu senti uma grande vergonha e tristeza por ter participado na brincadeira atrás descrita.

A Nelinha tinha o quarto cheio de livros, que me emprestou ao longo dos anos. Eu fui público para todas as suas histórias, dúvidas e aventuras de adolescente. Iniciou-me ao cigarro: ela fumava e eu dava duas passas, mas só depois dos quinze anos, porque ouvira na rádio que a investigação provava que, se se começasse a fumar depois daquela idade, a probabilidade de contrair o vício era muito menor!

Eu ensinei inglês à Nelinha; e ela a mim, estenografia! Falou-me das drogas, do rock e do sexo! Eu apertava as calças dela para pô-las à boca de sino e adaptá-las à variação de largura de anca, por causa das dietas.

Com ela, aprendi os primeiros gestos rituais e consumistas do maquilhar/ desmaquilhar.

Eu ensinei-lhe filosofia e psicologia e fiz-lhe todos os trabalhos manuais do curso de educadoras de infância: monas e coisas assim! Ela deu-me os mais lindos poemas para crianças!

Eu assisti ao exame oral de inglês para lhe dar uma força e ver os resultados da nossa dedicação, uma vez que era a sua explicadora.

A mãe dela guardava-me o correio secreto, porque em minha casa seria violado. Na altura, criei um código que partilhei com amigos e amigas - ainda hoje o uso para as passwords - mas nesses casos, a correspondência era confiscada.

E depois, na vida adulta, afastámo-nos irremediavelmente. Não tínhamos valores compatíveis, não nos identificávamos mais! Ela não me apoiou no meu divórcio, chegando mesmo a criticar-me por fazê-lo! Eu não fui a pessoa a quem pediu ajuda no dia mais triste e aflitivo da sua vida, quando uma criança sob a sua vigilância, morreu! Só mo disse uma década depois. Nunca tinha tempo para vir a minha casa, sempre atarefada, ano após ano! Enfim, por mais triste que pareça, há relações sem futuro.

De qualquer modo, a Nelinha Branquinha trouxe muita coisa boa à minha vida e eu à dela! For sure!

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