Contemplação

Devemos estar em 1976. Estou sozinha. A tarde faz a despedida, mas ainda está quente. É outubro. A vindima deste local foi feita e as aulas estão quase a começar em Lisboa. Não me apetece ir! Agora que me habituei a estes cheiros e modos de vida, não me apetece ir. Sinto dor quando entro em Lisboa, antecipo-a por Alhandra, a poluição, o calor artificial, o predomínio vertical...

Aqui, hoje, fico de pé, estanque, a mirar as copas dos choupeiros alinhados com o rio. O sol descai devagar e as folhinhas abundantes tremelicam. Posso ouvi-las como pequenos sininhos em árvore de Natal; espreitar os ninhos abandonados sem saber dos pássaros que aí viveram; seguir a lagarta que se estatelou no chão e riu, numa cama fofa de folhas amarelas - quem me dera! 

As copas das árvores assim altas e trémulas desafiam as linhas suaves do horizonte como a da estrada oficial que desagua na curva mais importante da minha vida e depois segue viagem por terrinhas até se adentrar na cidade maior, as Caldas, ou então, por capricho, cortar caminho e visitar as grutas em Rio Maior.

A curva mais doce e materna fica-lhe pelo meio e ela nem sabe, porque é só uma curva de estrada. Não sabe que fui concebida na casinha acima e que lá nasci também. Que lá morreu a avó Gracinda! Que lá brinquei o melhor tempo da minha vida numa bolha de afetos. Ela não sabe que ficou na foto que tirámos à família, ainda intacta, ao lado do vaidoso Vauxhall preto. Estava um dia de sol, do mesmo azul de quando, no sentido oposto, chegámos para o velório da avó. Nunca mais o sítio foi o mesmo, era o sítio dela, o seu reino!

Continuo a seguir as linhas de curvas doces que descem ao afastarem-se de Lisboa. Há algumas hipóteses de alinhar no céu o ardor do fogo derramado e dos azuis exaustos, pelos diversos formatos das pequenas montanhas do horizonte. O balancal! As minas de água que eu sei existirem, mas se escondem nas silvas, nas hortelãs e nos fetos. Mas não sei dos seus segredos: guardados nas profundezas da rocha escavada pelos mouros ou pelos moiros de trabalho. Oiço-lhe o pingar estalactítico. A avó quentinha à minha beira enrola uma folha de couve que faz de concha e eu bebo deliciada aquela água prateada e fresca da mina, de aromas próprios. 

Lembrei-me que a casinha além no Casal do Bosqueiro é a mais bela casa. Em pequena desenhei-a muitas vezes. Os outros miúdos faziam as casas todas iguais mas eu tinha a minha. Real. E profunda!

A estrada oficial não invadia a minha casinha do amor. Entre elas havia um cordão de caminho com alguns torções e moitas protetoras de olhares curiosos demasiado próximos.

Depois a brisa acordava-me e lembrava-me do meu rosto e um cabelo fazia comichão porque eu existia ali! Mas o olhar levava-me às copas dos choupeiros de novo e já cheia de saudade, caminhava vagarosa para casa, onde jantei e dormi e gravei o meu filme no sonho.

E depois parti, e voltei, e parti, tantas vezes, umas sem vontade de vir outras, de ir, e acrescentei muitos lugares e filmes à memória, mas... este momento não lhe tem comparação!

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