Em Família

Duas raparigas e um rapaz, pai e mãe, viviam nos arredores de Lisboa, num local cujo crescimento populacional levou à sua ascensão a cidade. A mãe fazia costura para fora; o pai era empregado bancário.
 
O homem teve a ideia de fazer uma sociedade criminosa com uns conhecidos e passar informações úteis para ganhar muito dinheiro repentino na bolsa de Salazar. E assim foram adquiridas diversas vivendas em locais de certo charme e um extenso apartamento em zona nobre da cidade de Lisboa. Seguiram-se viagens, aristocráticos hábitos e clubes para o pai. Os garotos deram-se mal com as mudanças, particularmente os dois mais novos. Os pais brigavam a torto e a direito. A mulher, aborrecida com o chorrilho de amantes; ele, sem paciência! Acabava tudo à murraça. A mulher achava que o filho esquelético, por ser homem de 13, 14, 15 anos, iria defendê-la do marido, mas este escondia-se, apavorado, debaixo dos lençóis. 

Confusos, rapaz e rapariga mais novos, experimentavam os seus corpos ignorando a consanguinidade. Mais tarde, o rapaz sucumbiu ao remorso e cada vez mais confuso recebia queixas escolares em catadupa. Reprovava anos atrás de anos. 

Um dia, a mãe desesperada, dirigiu-se para o rio ali próximo, convencida de que o rapaz lhe seguiria o rasto, bradando na rua ameaças de suicídio, mas ele retornou para casa quando lhe começaram a faltar as forças mas pernas para correr atrás da mulher tresloucada. Ela, às vezes, dizia aquelas coisas da boca para fora. Sentindo-se mais uma vez indigno, escondeu-se debaixo dos lençóis, como sempre! 

Ela retornou passadas uma horas "salva por um Senhor, que percebeu a sua situação". E nunca mais perdoou o filho! Considerava-o um cobarde. 

O castigo do rapaz foi ir para um colégio interno bem longe de casa. Lá, ele aprendeu a assaltar casas e a vadiar, principalmente na noite de domingo, depois da chegada do fim de semana em casa, pensando o colégio que o grupo de adolescentes só vinha na manhã de segunda-feira. Por vezes, também saltavam pela janela. Havia uma cumplicidade com o guarda noturno. 

O grupo sofisticou as suas técnicas e organizou uma fuga por mar com o espólio. Foram apanhados nos últimos dias de preparativos, já recolhidos numa das vivendas violadas, desabitada na altura. 

O homem, com o poder do dinheiro e o seu aspeto muito digno, suplicou por perdão, que fechasse os olhos a justiça, que ele trataria do filho. E assim foi: o pai fez um esforço educativo durante meses, através de prolongadas conversas sobre valores. O rapaz não mudou logo. Tinha ficado com o vício do furto. Costumava retirar qualquer coisita na tabacaria da vizinhança. Até que se transformou para sempre e, em grande arrependimento, nunca mais tocou no alheio nem na irmã. Desenvolveu uma neurose. Teve alguns acompanhamentos psiquiátricos avulsos ou temporários. 

Para além de uma história inqualificável, sentia-se mal na sua pele, e, às escondidas, acumulava literatura homossexual. Nunca foi capaz de partilhar este facto com a família e sempre foi tendo relações anémicas com namoradas. Viveu muitos anos da sua vida adulta com os pais; já ia nos quarentas e tais quando arranjou casa independente. Conseguiu tirar o curso de topografia, que exercia. Os pais viviam separados dentro da casa, cada um com o seu espaço, embora a mulher continuasse a servi-lo como empregada. Ela e a outra empregada, a quem pagavam. 

Nas muitas reuniões de família, já com netos e genros, o disfarce era eficaz: uma família acolhedora e feliz! 

A filha mais velha casara com um homem de negócios. Sussurrava-se que este enganava umas velhotas, donas de um colégio. A verdade é que conseguia manter uma bela casa e tinha empregada interna. Mas com o tempo, deve ter querido chegar mais alto, e casou-se com uma dessas ditas velhotas, que afinal é apenas um dúzia de anos maior do que ele - não que não se note -, mas parecem ter uma vida engraçada. Ele finalmente expõe os seus quadros de estilo realista e mantém o sorriso amplo de sempre.

A mais nova, ainda namoriscou com o patrão, dono de empresa financeira - Quinta da Marinha... -, mas não se safou! Tentou mais um com vivenda na outra banda, mas sofreu de violência doméstica e divorciou-se. Depois casou com um Senhor "com bom nome, de família", simpático, mas também se divorciaram. 

O filho homem, continua a disfarçar e a apresentar namoradas. Foi há muitos anos atrás, durante o percurso da ponte sobre o Tejo, de regresso da casa de férias da família, que o choro irrompeu e a angústia o dominou: então ele decidiu procurar já em solo firme, consolo num travesti. Inábil, deparou-se com uma mulher. Sentiu-se o ser mais miserável ao cimo da terra! Depois disso, à noite, não conseguia dormir e fazia corridas pela mata de Monsanto. Um dia, transtornado, voltou a casa para buscar o carro com o equipamento de trabalho e foi ao encontro de uma prostituta. Extraiu-lhe os órgãos sexuais internos, aqueles que lhe faziam falta para se sentir ele próprio, mas que não ousava pedir ao mundo. Por causa da família! 

A justiça nunca encontrou o autor do crime!

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