O Colecionador de Memórias

Era gente fina! A praceta onde morava tinha o nome do pai, ex-funcionário da Câmara de Lisboa. A irmã tinha uma loja na Avenida da Liberdade! O tio fugira para o Brasil no 25 de abril - o homem intercetara com o aparelho de rádio amador, as comunicações militares, e avisara o tio da iminente prisão.

A casa do homem era modesta e cheirava, não a mofo, mas a algo inextrincável, entre ervas, fumos, mezinhas e madeiras antigas. Não usava drogas, nem tinha lareira, mas tudo tem a sua explicação. 

A seguir à entrada, já no lobby, uma grande tira até ao teto expunha um desenho a carvão de uma luminosa garçonete dos loucos anos vinte. Olhava as visitas, enquanto se virava de costas, provocadora, captando e puxando o fio do olhar do observador com o seu - um atrevimento! Na mesinha da sala, descansava um quadro a óleo que estava em restauro. O homem produzia pigmentos de forma antiga, como aprendera no curso de pintura ou arquitetura...  Se ele se começasse a explicar, ou a contar a obra, era uma tarde perdida! A rapariga pensava assim, apesar de apreciar o trabalho, mas era decetiva porque ele aprofundava em excesso, como se falasse para si mesmo e ignorasse o conhecimento e a disposição do ouvinte!

Mas no dia do móvel chinês, foi outra a recetividade da pequena. Bebeu como de uma fonte fresca tudo o que ele contou do pequeno móvel que literalmente lhe foi lido, as suas figuras e significações, de uma ponta à outra, passando por inúmeros recantos que ela só viu, porque guiada por ele, pois o móvel era um livro com estórias encastradas na história. Engastes em madre pérola e alguns relevos, uns séculos de existência, os antigos donos, o transporte, o autor, pouco ficou ainda por contar. E ela estava ali encostada àquela preciosidade: o móvel mais encantador que soubera existir! Nessa vez apaixonou-se por tudo o que bulia ou repousava num raio de vinte metros, o que incluiu o homem, o antiquário. 

O antiquário, fazendo pausa no negócio de momento, tinha ainda outras preciosidades. Ao sair da biblioteca passava-se por um aroma campestre de folhas fumadas: era uma máscara africana de grandes dimensões, com palha por cabelo. Cabelo de branco, por certo, ou de algum espírito.

O antiquário gostava especialmente das suas memórias encarnadas, e se nesse estado não pudessem ser embalsamadas, ele usava a repetição dia após dia, após noite após...era o caso da música. Adorava criar séries musicais enquanto lembrava o disc jockey do Ad Lib, a boîte do Manecas Mocelek, no 7º andar de um prédio da Rua Barata Salgueiro, que frequentava na jovem adultícia. Parecia-lhe a ela, não raras vezes, que se tratava de um amor secreto, quiçá homossexual...ele não ousava assumi-lo, mas era o que lhe parecia. Poderia passar noites a fio a fazer o mesmo e a dizer o mesmo! Era um cansaço, mas enternecedor. Passados tantos anos! Sim, porque já não era um menino, estava rente aos cinquenta. Notava-se bem a rejeição da idade. Os amigos novos eram mais novos, às vezes pelos vintes e tais. Era o caso dela também!

Para assim bem lembrar a sua juventude, o homem cuidara de artilhar a sua aparelhagem com ligações de ouro nos fios e comprara as colunas do extinto grupo Orange! Os vizinhos mal suportavam aquele chinfrim e ele tivera que passar para os fones, após desavenças.

O homem precisava parar por ali as encrencas: tinha o poder parental em Tribunal, um advogado jovem que inicialmente se deixara seduzir com gravações musicais e artefactos, mas agora o avisava de que iria desistir de o representar. É que o homem não queria a solução, mas a tortura da ex-mulher!

E, por outro lado, ele precisava ser mais controlado, pois tinha havido uma queixa na polícia e esteve a um fio de deixar de poder ser professor por ter puxado da arma a uns miúdos na rua, quando se sentiu irritado com eles, por da cá aquela palha. Andava sempre armado: tinha medo de algo! A casa estava cheia de armas, já tinha ensinado o filho de dez anos a atirar. Matava moscas com uma pressão de ar!

As outras relíquias do homem consistiam em objetos doados, por exemplo pelo João Cutileiro, e fotos, muitas fotos, que lhe lembravam o tempo em que era dandy e acompanhava estrangeiras finas. Uma, dera-lhe um relógio valioso em conjunto com um postal de gratidão! Era um primo que lhe fazia os contactos. Muitas e muitas fotos de mulheres elegantérrimas dos anos sessenta.

A arte africana tribal era outra paixão e o homem sabia bem encontrar por uma pechincha peças que enviava para a Sotheby's. Ele explicou em pormenor algumas que tinha em casa e os detalhes distintivos entre o original e possíveis cópias. Ela aprendeu alguns.

O homem tinha fobia a aglomerados de gente, pelo que não conseguia ir ao cinema. Assim adquirira as melhores fitas e apresentava-as aos amigos e amigas, que visionavam o cinema na TV do seu quarto repimpados inusitadamente na intimidade da sua cama!

Os móveis da sua casa não eram quaisquer uns, pareciam de estilo Bauhaus, comprados em segunda ou outra mão. Algumas peças vintage e Pop Art decoravam o quarto e a sala.

Tinha dificuldade em estabelecer relacionamento de modo natural, ao vivo, e por isso adotara um curioso método para novas relações: ligava números de telefone ao acaso com o código inicial de perto da sua casa e encetava conversas surpreendentemente interessantes, atraindo as suas vítimas a um cafezinho e ....ah não! não é isso que estão a pensar! O que ele fazia era deitá-las na cama para um bom cinema, ou no sofá para uma ótima série musical adlibiana. Com sorte, comiam bifes de peru grelhado e ouviam a história do móvel chinês, das últimas peças de arte africana que comprara, do restauro de pintura que fazia no momento, seguido de um passeio pela Quinta das Conchas, onde captaria umas fotos para a posteridade e para o seu álbum de coleção de garotas com quem saiu! Agora com menos charme, mas a idade dele já era outra e não havia as facilidades de outros tempos, outros regimes! Ficava-se por aqui! 

Andava entretanto preocupado por não estar a conseguir parar esta adição, este jogo do telefone! 

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