O mundo liliputiano do rádio

O rádio era o centro da casa. Eu tinha lugar, se não cativo, pelo menos frequente, com o ouvido esquerdo encostado à rede emissora e as mãos sempre prontas para o controlo dos botões. O olhar não saía da faixa de vidro iluminada.

O rádio a válvulas oferecia-nos, as canções da moda portuguesa, que nos inspiravam a organizar festivais - hoje diríamos "the voice" - a mim e ao meu irmão, no famoso corredor da casa, que o era da fama também, com os microfones improvisados e muitos maneirismos...

O rádio era um atractor perto da hora de almoço, para o mulherio. Não sei porquê, mas fazíamos uma meia lua em torno do objeto de adoração, quando davam as radionovelas, o Sr de Saint Maurice ...,;  Simplesmente Maria partiu todos os corações! Era imperdível e alimentava depois as conversas empáticas com a vizinhança. 

Eu punha-me muito encostadinha à rede emissora, a olhar para o vidro iluminado onde corria um filamento branco que sintonizava manualmente a onda. Qual onda?! eu não via onda nenhuma: para mim, os falantes estavam ali mesmo num pequeno mundo dentro do rádio. Quando muito, era como um palco, podendo eles provir e depois de os ouvirmos afastar-se para os bastidores de um pequeno palco. Até lhe imaginava umas cortininhas vermelhas lá dentro. Ouviam-se os cavaleiros a trotar nas estradas de pedras, os suspiros, a subida de escadas, os passos graves dos homenzarrões e até os gritos de uma mulher louca trancada num quarto - tudo ali dentro da caixa mágica!

Depois à hora do almoço surgiam os parodiantes que faziam o meu pai rir muito, a mãe apenas sorrir, a avó ficava indiferente e eu de tola a olhar para eles todos!

A verdade é que havia dois homenzinhos muito extrovertidos, um com uma ventoinha na cabeça e outro de grandes patilhas, que de vez em quando nos lembravam de uns barretes que eram uns bolos do Ribatejo.

Além disso deleitava-me  com os reclames: de Colónia é o leite; leite de colónia; para a beleza realçar! - dizia uma brasileira com voz sedutora. Já a seguir, a alegria da Rua da Vitória 46, 48 ; (...) quem lá vai é bem servido e sai sempre bem disposto. Também havia pudins com velhotes ou chineses, não me lembro! O terrível Ajax que eu não percebia se tinha relação com o homem dos correios que ia de trompete e a cavalo...

O mundo do rádio era um encanto. Mas também uma aflição porque não havia gravadores. Não se podia perder a radionovela! O mundo parava àquela hora!

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