Saltimbancos e Bonecreiros
Por vezes, chegavam à aldeia os saltimbancos, os malabaristas, os bonecreiros e os palhaços, com vida itinerante, para espetáculos mais primitivos do que o circo.
A minha estreia foi onde hoje é a praça, perto da casa da Rita: montaram um palco e dispuseram cadeiras. Penso que, para terem rendimento, cobriram as laterais e no fim do espetáculo pediram umas moedas, mas não estou certa disso.
Faziam divulgação com algum alarido, distribuindo panfletos, se a memória não me trai. Como não havia distrações destas habitualmente, tinham um certo sucesso. Ao divulgarem umas às outras, as pessoas já antecipavam o riso.
Preparávamo-nos com a vestimenta domingueira e uns agasalhos, que a noite estava fria, e subíamos a rua do Ti Raúl. Passávamos pelo salão de dança - olarilas, pois havia uns! E chegávamos finalmente à encruzilhada de ruas onde acontecia a praça. Trocávamos umas boas noites e algumas informações de estado com quem não víamos há mais tempo e esfregávamos as mãos de contentes, em pensamento. Era a minha primeira vez e estava cheia de expetativas, mas elas foram superadas! Os Bonecreiros, Saltimbancos e Companhia transformaram aquele espaço e tempo numa vivência fantástica de cores, habilidades contorcionistas e manuais, piadolas com vozes de falsete, histerias de trompetes, marionetas e fantoches, que nos transportavam para um mundo transcendente e antigo. Quase tão antigo como a própria humanidade!
Um destes dias, ao ler um livro francês, Le Grand Meaulnes, em que uns rapazinhos que viviam numa aldeia francesa no século XIX, tinham usufruído do mesmo tipo de espetáculo, recordei-me dos Bonecreiros, como a minha avó chamava a todos. Provavelmente viajavam por vários países e eram nómadas! Deixavam as populações encantadas por onde passavam, mas também perplexas. Eles eram os outros, os forasteiros, mas que sabiam trazer-nos algo que vivia profundamente dentro de nós, sem termos consciência. No entanto, no dia seguinte, já à luz do sol, não passavam de uns miseráveis maltrapilhos; as crianças com os cabelos russos do sol. Tinham-se ido os trajes coloridos e o poder sobre a nossa atenção! E como forasteiros que eram, recaiam sobre eles desconfianças de furtos simples, como fruta nos campos e outros bens alimentares. Às vezes tinham patrocinadores locais que lhes permitiam acampar nas suas propriedades, mas a tolerância não era grande. Depois de divertirem o povo com o burlesco dos bobos, anões, bonecos, homens retorcidos e vestes da nobreza, os Bonecreiros seguiam viagem nas suas carroças e um dia voltavam.
"Pareces um Bonecreiro!", diziam na aldeia a alguém que estava fazer-se de engraçadinho e com traje desviante do bem-parecer local. O "trickster", o eterno trapaceio ou embusteiro das comunidades humanas é por isso considerado um arquétipo do inconsciente coletivo. E todos os arquétipos são tão poderosos sobre a "alma" humana!
Os dias de saltimbancos e bonecreiros eram dias felizes!