Os Espantalhos

Tio, para que é o boneco? É mesmo para os passarinhos não comerem? E depois morrem de fome? E se nos outros sítios também houver espantalhos? E se todo o mundo tiver espantalhos? Eles morrem para sempre? Escusas de rir de mim! - eles morrem e acaba-se a espécie. Gostaste mais?! Não me respondeste sempre tio. Vou perguntar à tia. Não está?! Então vou brincar com a Clara e o Rui.

O Tó viera aos cinco anos, de Moçambique, para viver uns tempos com os tios da Quinta Formão. Os pais viriam mais tarde, para Lisboa provavelmente.

Era já de ladainhas, falava pelos cotovelos e fazia experiências que não lembravam mesmo, ao diabo! Um dia enfiou feno nas cuecas da Clarinha, até ficarem como uma almofada e ela deixou.  Com o cimento das obras fez atrás do telheiro uma cidade medieval, castelo, ameias...raio do rapaz, deixou aquilo secar e foi o cabo dos trabalhos para tirar, mas o tio reconheceu talentos ao sobrinho.

Gostava de espraiar ao vento: atirava-se do alto do covão numa correria em dias de ventania, gritava e sufocava ao mesmo tempo e ninguém ouvia, está claro! Ele é que conta como sendo revelador de qualquer insondável característica de personalidade! Talvez seja!

Lá andou de volta do espantalho, clandestinamente, tirando os pedacinhos chocalhantes que assustavam os pássaros, seguindo com os brilhantes; instalou um comedouro por dentro da cabeleira de palha, na qual pôs laca para não se mover. Em breve, o espantalho estava cheiinho de cocós de pássaro, que ele ia limpando como podia! Mas assim, ao menos, não se acabaria a raça da passarada.

Depois o pai veio buscá-lo, levou-o para diversos locais, pois a família era um pouco nómada no início: Lisboa, Coimbra... o pai teve que desenrascar um trabalho onde aceitassem retornados, tornou-se taxista; a irmã cresceu muito erotizada, facilmente dormia com algum homem, experimentava drogas; os pais, muito envolvidos com o trabalho, andavam distraídos dos filhos, mas a sua presença era fatal ao jantar: era rara a vez que o pano da mesa não viesse abaixo, puxado pelo pai, com pratos, talheres e as terrinas com a comida que a mãe cozinhara. Os gritos infames! Os insultos! A enorme agressividade! O medo do rapaz! O destrambelho progressivo da irmã, que teve de ser internada! E durante a tarde, juntava-se na mesma casa um grupo de jovens; as mulheres um pouco mais velhas do que eles; vinham todos ouvir as novidades discográficas na aparelhagem nova, traziam música erudita, eslava, e ficavam por lá a amornar com os adolescentes, que nem sabiam o que chamar àquelas relações - nem curtes eram! Ou, eram modestas curtes! E as lições de vida do Manel Ruiz, ao som da viola! Um filósofo prático com quem o rapaz muito aprendeu da vida dos Homens antes de tê-la experimentado à séria e com autonomia.

O Tó pouco se interessava pela escola, já ia na terceira retenção! Experimentou drogas, nas não se apegou a elas. Começou a trabalhar como ajudante numa loja e foi aí que retomou os estudos à noite e tirou vintes a várias disciplinas. Depois escolheu por escolher: Filosofia. E foi sempre evoluindo, umas vezes empregado, outras como consultor, outras como presidente ou mesmo empresário.... Chegou à direcção de uma escola, onde teve uma ação invulgar, mais próxima dos alunos do que era habitual. Mas, por vezes, na vida, reproduziu a agressividade aprendida e foi acusado de violência verbal doméstica e abuso por assédio moral. O rapaz, agora homem, de tudo estudou e aprofundou desde fotografia, a equipamentos especializados ou raros, física, investigação, música, literatura, trabalho de pedreiro, canalizador, eletricista, arquiteto, eu sei lá...Um verdadeiro Da Vinci!

As relações foram às moles, uma ou outra prostituta, uma bolseira da orquestra da Gulbenkian, diversas estrangeiras urbanas bem instaladas na vida parisiense, outras em Dublin, Munique; algumas investigadoras; miúdas que queriam filhos, mas ele não! duas latino-americanas mais novas - só porque o eram -, quando se lhe dificultou o ato! Tudo era calculado e para tudo tinha a fórmula perfeita e ai de quem discordasse! Saltitou, sim! Saltitou até que a saúde o traiu e, antes que tardasse, partiu para uma aldeia qualquer onde descansava trabalhando, envolvido na reabilitação de uma casa velha, em que morara inicialmente, sem condições. Deu livros, livrou-se de muitas sombras do passado, mas também de objetos valiosos, e partiu! Passeia muito por Portugal e pelo Mundo, que dele já conhece os quatro cantos. É ouvi-lo falar das casas palafitas do Gana, do Nepal, do episódio com a máscara chinesa numa qualquer fronteira, do lago Baikal, dos tempos em que viveu em Alexandria com os coptas, das passagens por Hagia Sophia... Um homem com um mundo dentro! Mas acabava só! Como um espantalho!


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Nascera na aldeia, mas logo em bebé viera para a cidade do interior. Era filha única e tinha poucos amigos. Na adolescência procurou alargar horizontes, mas o pai, castrador, chegara a envergonhá-la junto a uma discoteca. A Faculdade, numa cidade cosmopolita, viera como uma benesse. Timidamente, iniciou amizades, sobretudo femininas, mas aos poucos foi-se entrosando com rapazes do curso de Letras, muitos deles oriundos dos PALOP. Começou a namoriscar, mas rapidamente foram mais além e ela engravidou.

Casaram, desistiram do curso e mudaram-se para a capital. Com modestos ordenados, o homem experimentou vários trabalhos e ela ficou em casa na companhia da sogra e da criança. Não tiveram mais filhos. Com o tempo, a relação de despoder com a sogra, foi cristalizando, e a mulher dificilmente arranjava espaço, que não fosse na cama com o seu homem, ou na relação com a filha, mas até aqui havia competição. No entanto, a escolha da garota sempre foi para a mãe. Eram tempos de dificuldade, uma crise mundial estava a instalar-se e a mulher só arranjava biscates. Muitas vezes pensava em como tinha sido vítima da sua própria imaturidade e outras, tinha raiva do marido, que apressara as coisas e lhe impingira a mãe.

A criança fez-se mulher e ela sim, cursou no ensino superior com brilhantismo e ficou como monitora nos primeiros tempos logo seguido de professora auxiliar. Acabou fazendo carreira universitária. A mãe sentia o máximo orgulho na filha; o pai era mais comedido na expressão do que sentia. Era um gosto vê-la, com ar humilde e ligeiramente descuidado, apresentar a filha: é professora da universidade - dizia, segurando a saliva! E sorria metade para dentro, metade para fora!

Muito tempo depois, a sogra faleceu, o marido adoeceu e ela ficou-lhe de cuidadora. Ele era extremamente exigente e ela foi ficando exausta, mas escondia, pois ao mesmo tempo sentia um orgulho em ser útil ao seu homem, e ainda, uma inconfessável vingança: vês! agora sou eu o motor da casa!

Por vezes, ficavam a lembrar os tempos de Coimbra, as latadas, as bebedeiras de cerveja, as escadarias, que até lhes davam preguiça de ir às aulas! As amizades com os cabo-verdianos que por lá pululavam! Que seria feito deles? Se se juntavam, em grupos de curso, esqueciam-se deste casal, que afinal não aquecera lugar no mundo estudantil! E logo depois, voltava a resmunguice normal. Ela tinha muitas queixas dele e repetia-lhas até à exaustão, esperando uma palavra de arrependimento, um sinal qualquer, reparador. Mas não! Ele ou se ria das pequenas patifarias e humilhações que lhe tinha feito, muitas vezes em público, ou mandava-a calar rudemente. E ela volvia obsessivamente ao assunto, esperando fazê-lo entender.

Um dia, ela começou a sentir-se mal. Atribuiu-o ao cansaço de tomar conta do homem dependente, depois à artrite reumatóide, ao coração, às obras lá em casa, à coluna vertebral. Uma raiva, primeiro surda e depois bem audível, cresceu em volume e substância. Um ódio instalou-se na relação com o homem. Perdera toda a esperança de que ele se redimisse! Doía-lhe a humilhação de se estar a sentir fraca, incapaz de tomar conta dele; esforçava-se no seu limite para manter os cuidados anteriores. Não conseguia mais cozinhar para si mesma, nem aquela deslavada sopa roxa onde punha tudo o que lhe disseram que era bom para a saúde. Automedicava-se. Piorava, daqui, dali, os sintomas eram avulsos e difíceis de interpretar. Ia a médicos, talvez seja isto - exame assim! Talvez seja aquilo - exame assado! E lá andava ocupadíssima de consulta em consulta. Até que passou a visitar frequentemente as urgências - não tem nada, diziam! Faça a medicação antiga como deve ser. Deve estar a aldrabá-la! E estava! A mulher sentia-se a definhar e o seu homem ali para tratar! E ele exigia ser tratado exatamente da mesma maneira de sempre. E ela a esgotar a energia! E mais consultas. Tudo normal para a idade! Mas faça mais este exame! E a mulher, um dia, não voltou da urgência, onde numa primeira apreciação não tinha nada, mas depois precisou de andar de hospital em hospital até ficar nas mãos de intensivistas. Finalmente estava bem entregue, ainda sorriu! Chegaram os resultados dos últimos exames. Ela não os chegou a conhecer. Estava de partida, desconfiando que os seus pesadelos repetitivos de todas as idades, eram aquele pedaço da sua vida, em bolandas, em roteiros confusos onde loucos decidiam confiantes e outros loucos desfaziam, sem nunca darem razão à mulher! Nem fazerem um raciocínio lógico! Ou ao menos, empático! A mulher sentiu-se um espantalho. Sem voz, nem opinião, sem poder pedir ajuda, sem poder fazer um balanço final. Sem poder decidir nada! Tiraram-lhe tudo ou quase tudo o que a fazia ser ela própria, a sua personalidade. Deixaram-lhe ficar apenas um corpo cheio de tubos, apitos a cansar-lhe a cabeça frágil, oscilante entre a dormência excessiva e algum tento - que a exasperava ao ouvir conversas desanimadoras, quando a pensavam a dormir! E até quando a mimavam com massagens, não sabiam, e ela não podia dizer, que as detestava - sempre fora assim!

Reduzida a um espantalho, a mulher deixou-se levar da vida!


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Era uma mulher muito alegre,  vibrante, cheia de ideias, motivada para descobrir, passear, visitar, conviver, trabalhar...Sim! adorava os seus queridos alunos aos quais dedicava a sua vida sem filhos. Boa colega na escola! Que lhe faltava?!

Tentara tantas vezes dar um rumo à vida pessoal, ficar ao lado de alguém. Mas não sucedera! Era um mistério que envolvera vários terapeutas. Mas nada avançava.

E havia tempos em que desanimava e desistia. E tempos em que o trabalho a preenchia por completo. E outros em que emudecida, mancava no andar, emagrecia...deprimia!

E outros em que se reerguia e tentava, tentava e outra vez. Mas não!

E na escola?! Criava projetos, aplicava métodos inovadores, fazia muita formação, supervisão. Fazia tudo para melhorar o ensino dos seus meninos! E eles gostavam dela! Eles, sim!

Era uma grande amiga. Presente. Telefonava se não podia visitar ou participar. Tentava juntar grupos que conhecia das mil atividades que praticara. Dança disto, dança daquilo, experiências alternativas, neurolinguística, yoga, astrologia, psicologia..e tantas mais!

Era uma pessoa encantadora e bonita! Uma pele suave. Um corpo que conseguia ser elegante quando se investia. Raramente se maquilhava, mas não lhe fazia falta. Penteados com retoques especiais. Depilação inovadora! Sapatos giros! Belos casacos! Casa engraçada, carro elétrico....

Mas, namorado, nada! E não era falta de interesse, vontade ou jeito! Era porque era, e isso consumia-a por dentro.

E agora, que ela anda por aí, talvez a tenham visto, com ela convivido ou amado por uma noite ou uma curta temporada!

O que vos apraz dizer-lhe? É ela o vosso espantalho?! Gostava de saber!

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Há pessoas que tratam as outras pior do que o rapaz fazia ao espantalho! Mas nem ele, o Tó, escapou ao destino!


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