Os Sonhos de Clara


A carruagem encalha na subida. Clara sai para respirar. O ar é denso de puro. A pele encrespa com a frescura do lugar. Ela rejeita o casaco leve oferecido por Ema. Quer sentir aqueles limites que pertencem indubitavelmente ao seu corpo. Sente-se mulher por bónus. Sorri para o lado da brisa ocultando de Ema a reação excitada e refresca as faces entretanto coradas. Estou viva! Sou uma mulher viva e rija! - pensa.

Satisfeita, pode então alinhar o compasso do olhar pelo horizonte amplo, fazendo de si um epicentro. A ideia aborrece-a um pouco. Na verdade está ali para se esquecer de si, da história recente, aliás de todas as histórias de si! Apenas traz Ema e uma maleta de básicos.

O horizonte não chegou a ver Clara, um pontinho numa rede de caminhos, vacas, moitas e muitas hortênsias, lagoas e laguinhos, fumarolas e cascatas...como poderia vê-la?! Ainda assim, houve um bom acolhimento e as duas mulheres sentiram-se bem-vindas àquele local abençoado por certo!

O cocheiro relinchou com o cavalo, ou melhor, o som coincidiu - podiam continuar viagem! Troteando por mais umas horas chegaram já noite e a dormitar, cabeça contra cabeça, à Mansão das Rosinhas.

A mansão vê-as chegar e, curiosa como é, põe-se a tirar pela pinta as noviças - pois que muitos hóspedes são repetentes -, mas de todos aprendia por observação. Pudera contar ela, as histórias que sabia!

As senhoras acomodaram-se, cada uma em seus aposentos. Não encontraram ninguém mais, além da rececionista, a Madalena, que pediu para ser tratada por tu, e Clara desafiou-a a recíproco tratamento perante a consternação de Ema que não teve como não cair na generalização da rececionista.

Os quartos eram aromatizados ou o cheiro do ar era mesmo aquele? Lavanda? Hibisco? Ambos? 

O quarto de Clara era vaidoso e sabia-se bem apresentado, ao nível da Sra. de classe que percebia ter por hóspede! Ao contrário da Mansão, era menos perspicaz e nada metediço, um bom confidente, se a Sra., assim o desejasse! Orgulhava-se dos bons sabonetes, do linho das toalhas e seus bordados locais, das rendas da colcha e da bela vista da sua janela! Para além do mais, era bem climatizado, virado a sul!

Clara tomou um banho aceitando as pétalas sugeridas no rebordo da banheira e apressou-se a dormir e descansar da viagem! 

A viagem estava satisfeita com a sua prestação, não obstante o pequeno incidente, que talvez coincidisse com o levantamento do moral de Clara e Ema! E, missão cumprida, desfaleceu na existência!

E assim o fez Clara, entrando no mundo dos sonhos!

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Os dias de verão eram assim! A praia, as crianças, o marido, a sogra. Agora ficara mais um pouco a ver o sol desfazer-se num espetáculo wagneriano. Sentia-se completa. Enxugava os restos de humidade do último banho e lambia o sal depositado no ombro como em pequena! Crescera só um pouco, a vida fora-lhe gentil! Um caracol de cabelo, cor de ouro velho, poisou no nariz e ela riu. Qualquer coisa a bem-dispunha! Já não havia luz para a leitura do companheiro ali ao lado, engastado de areia, mas feliz com a sua leitora, perdoando-lhe a preguiça gostosa de hoje. 

Sabia-se fazer agradar e apreciava o desfolhar cadenciado da mulher. Conhecia-lhe já o nome: Bela Clara! Um pouco despropositado, mas em compensação era uma ávida e imaginativa leitora! O livro sentiu-se recolhido para o grande saco de praia e nem ficou despeitado com o encosto do creme de proteção, pois sabia que deixara ardor suficiente na mente da mulher para que ela o pusesse esta noite na mesinha de cabeceira!

Mas enganara-se, tivera a concorrência do marido e a mulher acabara adormecendo feliz! Por castigo suprimiria uma página, prometeu, despeitado!

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Escreve-se klara, avisava ela teclando.

O que fazes na vida?

Qualquer coisa rsrsrs. Não! Faço fotografia e estou de momento num projeto internacional. Vivo em Munique! Mas viajo com frequência!

Podes mostrar-me o teu trabalho? Algumas fotos. Não as vejo na tua galeria. Nem foto de perfil tens de jeito, que se veja a tua cara! kkkkk.

Ah! Claro! Dá-me só um pouquinho! Estão a chamar-me no estúdio! Bye!

Bye! Klara. Gostei muito de conversar contigo! Até breve!

Era estagiário no escritório de assessoria. Um prédio repleto de escritórios avulsos usava os serviços comuns, neste caso de secretariado, comunicação, entre outros. Tinha acabado o curso de jornalismo e aparecera aquele trabalho. Era verão: má época para novos recrutamentos. Assim, aceitara o estágio.

A chefe era uma senhora algo caricata. Já madura, pelos cinquentas, era bem-humorada e estabelecia um contacto fácil e descomplexado. Tinha sido professora de filosofia e criava uns momentos interessantes de conversas voadoras, como ela lhes chamava. Vestia roupa da Desigual e da Natura de cores vivas e padrões étnicos ou mandalas dispostas assimetricamente nas peças de roupa. Ele reparava muito nela, porque não tinha mais ninguém no escritório. Os outros tinham ido de férias. A secretária extensa da Sra. revelava umas pernas jeitosas para a idade a acabar em sapatos que ele achava divertidos, mas era um pouco gordinha. Andava nas dietas e em clínicas estéticas. O estagiário andava a inteirar-se dessas curiosidades femininas, aproveitando a abertura dela para tal. A mãe do rapaz era uma clássica  professora de físico-química, sempre de calçado confortável e roupas básicas e práticas e ele não costumava andar com cotas.

A chefe maravilha chamava-se Clara Mónica, um nome rebuscado que talvez fosse bonito no tempo dela. 

Tinham pouco trabalho e ela dera-lhe autorização para nos tempos livres espreitar a Internet: uns jornais, uns sites ou mesmo as redes sociais.

O ambiente do escritório era distinto, móveis de excelente qualidade, cadeiras confortáveis e música ambiente à escolha dos dois. Não podia estar mais satisfeito! Afinal era verão!

Clara Mónica andava efetivamente num momento de mudança da sua vida pessoal. Convidara o seu último, o bom do Rui, a fazer as malas e a sair. Esgotara-se a relação de um ano!

Estava habituada a short cuts relacionais, com extensão se valesse a pena e visto de saída quando o ardor afrouxasse e a comunicação desvalesse!

Deixara de se preocupar com opiniões alheias da família, amigos, ou mesmo do filho já adulto, a viajar pelo mundo para fazer reportagens!

O rapaz tinha curiosidade no trabalho do filho de Clara, pois era a sua paixão, mas conseguia pouca colaboração dela, estranhamente, por hábito tão faladora! Pressentia que a relação entre mãe e filho não seria da melhor qualidade e respeitava mudando de assunto.

Clara achava alguma piada ao garoto, mais novo que o seu filho. Questionava-se como seria ele enquanto homem enamorado. De qualquer modo, tinha que ser ela a organizar-lhe todo o trabalho: era inexperiente e imaturo!

Klara! Já estás on?! Ok! Vejo que não!

Clara Mónica enviou mensagem a uma amiga para lhe pedir um portefólio de uma garota com ar atrevido lá da sua empresa de recrutamento de modelos. Em breve recebeu a resposta com o pretendido. Pediu à Paulinha, namorada do filho, para lhe fazer um site, com urgência, para o book recebido. Era uma prenda que ia dar à filha de uma amiga! Ao fim da tarde recebeu o link e enviou-o ao rapaz, via Klara.

Esse dia tinha sido picante! - pensava ao olhar para o candeeiro belíssimo que acabara de adquirir, sob consulta da decoradora Jamilla; os cortinados, a nova roupa de cama, as cestas brancas, o jarrão...deixara um espaço mais limpo clean and cozy, como afirmara a decoradora, e ela estava muito satisfeita com o trabalho. De uma só volta, limpara também as memórias de Rui e outros, amassadas contra as paredes, de mãos a escorregar estonteadas de prazer- nos bons momentos! E o teto ficara limpo dos gritos de raiva que trepavam pelas paredes e se estampavam rente à cama da vizinha de cima, contidos, para esta não ouvir! Boa construção, bom isolamento! Mas assim, ficava tudo dentro daquele quarto, a emulsionar na dor, e que ela via e ouvia cada vez que se deitava na cama e o olhar se dirigia ao teto, ao candeeiro! Estava tudo envenenado e tudo foi renovado! O Rui está em fade out cinematográfico,  já em memória virtual, sem cheiro, sem manchas na parede, sem locus onde se fazer permanecer, indesejado! Fora! Adorava a sua nova decoração de quarto e adormeceria sentindo na pele a maciez dos lençóis novos, cuidados pela empregada antiga e conhecedora dos seus mimados sentidos. Lê uma página ou duas do livro que o estagiário lhe emprestou para puxar o sono, ultimamente difícil de chegar e atribulado por sonhos em que se sente a viver noutras épocas. Acalma, por fim, e adormece apaixonada pela sua nova vida!

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Caramba! Estou sem concentração para a leitura, não estou a perceber este livro! - protestava Clara contra o livro que se auto-suprimira uma página. Era por certo um livro mágico e tinha muito para contar à sua leitora. Ela que fosse um pouco paciente e não o dececionasse - não era um livro qualquer! Ela haveria de relê-lo e a ele retornar para orientação da sua vida! Era uma mulher bonita de tez clara e cabelos ruivos escuros; algumas sardas compunham o fenótipo irlandês! Devia ter raça celta e nem sabia. Sabia tão pouco Clara, a Bela! Ele, o seu livro revelador, estava ali pronto para amadurecê-la antes que entardecesse a vida e sabe-se lá o que podia entretanto acontecer. Afinal, de um dia para o outro podia haver uma guerra, que passasse de fria a quente, e ela tão desprotegida, sem um curso superior, dependente financeiramente do marido. Nem vida doméstica se pode dizer que tem, pois as criadas tratam de quase tudo. Tenta fazer alguma diferença na vida dos filhos, mas com pouco sucesso, que os perceptores e o liceu já os levam para voos que ela não compreende. É por isso que o livro se urge em desinquietar esta mulher, tão larva adormecida, tão parva adormecida em histórias de príncipes e compras falhas de personalidade - consumistas e influenciadas pela publicidade e as amigas fúteis.

Naquela noite, adormecera na página 50, suspirava para dentro de si mesmo o livro, mais consolado, ouvindo o leve respirar adormecido da sua leitora!

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Quando acordaram, Ema e Clara, e após o pequeno-almoço com produtos da aldeia próxima, muito saborosos, aventuraram-se com um farnel e calçado prático - Madalena até lhes arranjara uns culotes escuros que faziam de calças de homem, para melhor se equiparem para explorar aquela zona da ilha vulcânica. Desceram por veredas escuras de tanta rama e doces aromas; o sol em espadas de luz a furar por onde podia e elas muito gratas e risonhas com o desfrute da mãe natureza forte e serena. Captaram para a memória vislumbres dramáticos de lilases no céu do mar, o arco-íris mais pungente que alguma vez houveram visto, e prosseguiam, ora molhando, ora enxugando, em intervalos de moinha e sol, porque a ilha tinha essa personalidade rítmica, de todas as estações em cada dia.

Banharam-se clandestinas e nuas na fonte termal e pairaram sem peso na piscina natural ali ao lado, em êxtase. As águas ferrosas, de grande densidade, deixavam as duas mulheres de sós com a sua alma, de tanta leveza se lhes fez a carne.

Quem não ficaria curado com tal terapia?! Tinha sido uma ótima decisão, aquele afastamento do solar de Sintra, enquanto o renegado recolhia os seus haveres e partia aos sete mares! Elas enfrentaram a viagem de navio, mais de uma semana de enjoos, que as trouxe à ilha, ao paraíso! 

Já se aproximava o fim da tarde, quando perto da mansão viram uma gruta negra, que prometeram explorar noutro dia!

Exaustas, fizeram um relato breve a Madalena sobre o passeio e caíram nas respetivas camas, após a sopa do jantar, já servido nos quartos, e, sem banho, nem reflexões de final do dia, caíram de mortas nos seus sonhos!

A gruta ficara expectante, mas não tivera a quem dizê-lo, pois cascatas, piscinas, veredas e a parafernália dos amores da natureza vivenciados naquele dia pelas duas mulheres, se quedaram mudos, exangues de emoções partilhadas em silêncio em secretos fios de telégrafo inexistentes na matéria. A gruta compreendeu e aguardou a sua vez! Por hoje, pacificou-se, enroscando a consciência entre uma família de morcegos a ouvirem o mundo de pantanas!

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A sobrinha, de 13 anos viria fazer companhia aos seus filhos e aproveitar o bom ar da praia. Estava com saudades de vê-la, pois vivia no Porto e a viagem cansava-a imenso, na carruajem intercidades, parando a cada lugar deselegante, com utentes-surpresa de cheiro a suor, com galináceos ao colo e, às vezes, garrafões de tinto! Era a verdadeira feira do povo! Ela não gostava. Sentia-se alfacinha de gema e agoniava-a a primitividade daquelas gentes. O marido achava graça, os filhos também, mas ela espetava o rosto no vidro da janela, depois de desinfetá-lo com álcool que trazia na pequena garrafinha, assim como o corrimão do banco, em frente...Olhava a paisagem lúgubre, cheia de caniços - visão de terras de poisio, abandonadas à pouca sorte da pobreza. Enfadava-se e lia, nauseando com os vapores de querosene, ou parecido, da locomotiva arrastada. Era como se pressentisse a sua vida arrastada também para a lama, para a má-sorte, o trabalho manual, duro, o pão seco e a sopa brava de feijões e azeite poupado - era um Portugal pobre que desmerecia a sua atenção. E lia, quando podia, que podia pouco, sentindo-se assim ameaçada a cada paragem, perseguindo com o olhar quem saía - respirava fundo - e quem entrava - suspendia o ar nos pulmões. Era um ritmo de ansiedade que tentava a todo o custo evitar - daí que visitasse menos a família do marido, no Porto, e convivesse pouco com a sobrinha Marília, que agora felizmente a visitava.

Claro que também poderiam ir de automóvel, tinham um de boa marca! Mas o marido ficava demasiado fatigado - a estrada nacional um era um inferno de curvas e perigos. Chegava cansado e pouco usufruía do seu querido Porto: a ponte D. Luís que adorava! Fazia sempre um passeio pedonal quando ia à Ribeira, e comia o arroz de feijão e as Tripas. Ela detestava as francesinhas! Pelo sabor e pelos ciúmes das vizinha parisienses do cunhado! Mas ria-se da associação! Chegada, Bela Clara, passava-lhe o mau humor do comboio e usufruía com deleite a cidade escura de carvão e humidade, mas cheia de alma - lembrava-lhe ainda os dias de namoro com o atual marido. Sentia-se sempre feliz, naqueles locais!

Agora chegara a Marília. A garota abraçou todos e sorridente pespegou-se no sofá e espreitou o livro da tia Clara. - Estás a ler isto tia? Perguntava incrédula?!- Sim! Que sabes tu desse livro? Pouco - disse a miúda corando ligeiramente- falaram-me dele, os amigos! Ah! respondeu Clara, deslocando subtilmente o livro para o seu quarto.

Depois da refeição e da sesta bamboleando-se nas redes dispersas pela larga esplanada alpendrada da casa, sorvendo limonadas com folhinhas de hortelã-pimenta, foram a banhos de mar.

Divertiram-se todos! 

Hoje, foi a vez do marido ficar com os pequenos, ao final da tarde, colhendo os raios vermelhos do sol morrente. Mas os seus miúdos urgiram porta adentro para verem os desenhos animados e a prima ficara por lá.

Marília era mais desenvolvida do que parecia. Já lera o livro da tia e já namorara. Tinha uns longos e finos cabelos sedosos, louro escuro que iria abrir com aqueles dias de praia. Adorava o tio e depressa se pendurou no seu regaço e lhe ficou ao colo, aninhada como um feto, recebendo o calor dos raios em despedida nas frestas que sobravam da toalha de praia e do abraço do tio, quente e bronzeado. Era um homem belo, que fazia virar o rosto das mulheres e Marília sentia-se enaltecida por estar ali, tão bem, confortável e amada! Ele baixou o rosto para tocar o cabelo dela e apertaram-se mais. Ela soltou um braço cego e às apalpadelas encontrou o seu cabelo farto e solto. Enfiou os dedos e revolveu os mil fios amados. Ele beijou-a docemente e passou-lhe a mão pelos cabelos dela, de cima a baixo, repetidamente, como se fazem festas a um animal de estimação.

O filho mais novo surgiu então e também quis amolecer no colo do pai, junto à prima. E assim foi, os três, num abraço permanente deixaram chegar a noite cálida tão envolvente quanto o sentimento doce que os ligava num laço familiar indiscritível.

Os dias de praia de Bela Clara foram continuando, assim como a leitura ávida do livro. Quando acabou de ler a página 200, a última, a mulher declarou ao marido: quando chegarmos a Lisboa vou-me inscrever num curso nocturno. Quero fazer o liceu! Quero ir trabalhar!

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Klara! És linda! Quero conhecer-te! Conhecer-te a sério, ao vivo!

Só se vieres ter comigo à Grécia, que é para onde vou! Hum, conhecer gregos bonitos! rsrsrsrrs.

Klara! A sério!

É a sério, vou mesmo. Queres aparecer? Ia ser o máximo! Também adorava conhecer-te!

Klara, comecei agora a trabalhar! É só um estágio! não dá! Ainda se fosse para setembro! E mesmo assim, não sei!

Tu é que sabes! Desenrasca-te. Eu estou lá. À tua espera!

Agora tenho que ir. Chamam-me no estúdio.

Ok Klara. Beijinho. Adoro-te! Não te esqueças disso!

O rapaz ficou cabisbaixo do outro lado da correnteza de secretárias, em frente à da chefe, que por lá bulia, muito concentrada no seu computador. Ele balbuciou uma meia palavra, mas logo se arrependeu. 

O quê? perguntou a chefe. O que disseste?

Nada. Nada. Deixe estar!

Fala homem. Queres pedir alguma coisa?

Como sabe?! Adivinha?

Quase! e riu-se às gargalhadas. Sabes que a idade ensina muito! Mas diz lá o que queres!

É mesmo estúpido! Eu sei que comecei há pouco tempo aqui a trabalhar, mas como não há muito que fazer e eu posso assegurar algum trabalho a distância, talvez me pudesse dar uns dias. E ainda por cima - isto é mesmo abuso, eu sei! - precisava de um adiantamento para uma viagem.

Uma viagem? Onde?

À Grécia!

Ó Homem! Isso não é nada estúpido e até pode ser uma excelente ideia. Estava mesmo a pensar que isto por aqui está tão morto que dava para fazer umas férias, um cruzeiro, sei lá - e isso era uma excelente ideia. Vens comigo! Seja, à Grécia! Depois vais aos teus afazeres e eu aos meus, desde que assegures um mínimo de trabalho todos os dias. Que me dizes?

Estou sem palavras! Muito obrigada!

Vou já marcar aqui pela net, queres ver o rapidinho que é?!

Naquela noite ele e ela mal conseguiam dormir de comoção e já eram largas horas da manhã quando pregaram no sono!

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Clara e Ema falaram da gruta a Madalena e ela explicou-lhes que era propriedade privada e que teriam de pedir ao proprietário. Assegurou-lhes que iam gostar de conhecê-lo e que podia apresentar-lho.

Madalena pediu a Clara e Ema que tomassem conta da mansão, por uns momentos, para ela tratar do assunto.

O Joaquim era um homem alto e esbelto, que viera herdar as terras de seu tio, mas ainda não se ambientara bem às lides da agricultura. Falava de modos educados e talvez até fosse culto para o local, ela não sabia, mas gostava de arranjar desculpa para o olhar de perto nos olhos. Naquele dia, ele também parecia estar a precisar de conversar e, caminhando no sentido da feia gruta e depois já lá dentro, apresentava a Madalena os seus planos de empreendedorismo. Ou a exploração do minério da mina, ou havia de organizar visitas, a combinar com a dona da pensão, D. Cila, a patroa de Madalena.

A rapariga não cabia em si de satisfeita pela larga prosa que Joaquim hoje tinha com ela e as confidências e planos que lhe confiava, como se ela fosse uma senhora do seu nível!

Na escassa iluminação da gruta, o seu pé escorregou e ficou em espargata precisando do auxílio do Joaquim, que a socorreu de mais necessidades do as que se podem contar aqui!

A rapariga, lá se recompôs e se lembrou que abusara das hóspedes e que teria de compensá-las com um passeio à gruta, guiado pelo Joaquim.

E assim foi, na parte da tarde Ema e Clara, com lanternas a azeite, enfiaram-se na gruta afoitas, mas, já lá dentro, no frio e no silêncio, pensaram que tinham ido longe demais. Mas Joaquim queria mostrar o lago dos morcegos. Ema recusou. Então voltaram para a rua, deixaram Ema confortável, aquecendo ao sol e voltaram, Joaquim e Clara, a avançar até ao lago no fundo da gruta. Estava escuro como o breu, o que provocava uma sensação curiosa de visita às entranhas da terra, mas também às suas próprias. Como o Joaquim era um homem culto, conversaram sobre psicanálise e o inconsciente, que aquele espaço lhes fazia lembrar metaforicamente. O frio era tanto, que Joaquim abraçou-a e estranhamente ela não lhe resistiu a um beijo, mas conseguiu escapar a outros atrevimentos, já aquecida, e pediu para acabarem a visita, que a amiga estava sozinha lá fora.

Ema e Clara entreolharam-se e não foi preciso mais palavras. Mudas, jantaram e deitaram-se entregues a sonhos inconfessáveis.

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O rapaz estava em estado onírico! Acreditar que se encontrava num cruzeiro para a Grécia, iniciado na Itália para onde fora de avião, com a chefe, era simplesmente demais para ser verdade!

E dissera à mãe que ia em trabalho, o que era, em parte, verdade! Klara, ocupada com a preparação da viagem, não mais lhe dissera do que a morada e a hora do encontro em Miconos. E, em Miconos atracaria o cruzeiro. Sentia-se a viver num puzzle de sorte!

Durante a viagem, de feliz que estava, bebia, fazia noitadas na boa companhia da chefe. Ela abordara-o para um beijo.

Não isso não! Estava apaixonado! Era por isso que ia à Grécia. E lá contou à chefe o que ela já sabia e ele não!

Mas ela insistia quando ele já estava ébrio - sobre as benesses do prazer, a tomada de balanço para um amor mais elaborado, a importância de aprender novas técnicas, de se elevar na transcendência que o sexo permitia -, deixava-o confuso e abandonado na magia do feminino!

E assim, passaram alguns dias, mais no camarote dela do que noutros lugares - ele já cansado! Então ela disse-lhe que ele já estava preparado, e que se portara lindamente: era um excelente amante! Iria deixá-lo descansar e preparar-se para a receber a sua amada. Disse-lhe ainda que ele poderia ficar à vontade, ela iria tomar outra direção no passeio e apanhar outro transporte e que deixara tudo pago, o que ele precisasse, para receber a garota. Sorriu, dizendo que "comprara" um funcionário do barco, para que deixasse a miúda entrar enquanto estivessem atracados! Ele agradeceu com uma lágrima ao canto do olho e ainda a beijou, sem saber se como amante, ou como filho! E dirigiram-se, comovidos, cada um a seu camarote, adormecendo placidamente.

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Há mais de um mês que estavam na ilha, Clara e Ema resolveram regressar. Mas Madalena ao saber disso desmanchou-se num pranto inconsolável e explicou-se. Ficara grávida, era do Joaquim, mas ele queria - aliás exigia -, um aborto, e a mãe dela concordava. Mas ela tinha medo de morrer e também tinha medo de ter um bastardo naquelas terras tão convencionais.

Então Ema e Clara, depois de conferenciarem, decidiram contratar Madalena para vir com elas para Sintra. 

E assim fizeram, cuidaram da criança como se de um sobrinho se tratasse e permitiram a Madalena ir aprender as letras numa escola feminina de jesuítas, e ela tomou a embalagem e tornou-se enfermeira. Deixou sempre o filho ao cuidado das tias adotivas. 

Um dia trouxe um livro de oferta às suas benfeitoras, que dizia ter mudado a sua vida, para que lhes desse o mesmo efeito que a si mesma: uma vida de sonho!

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Quando regressou a casa, o rapaz tinha o ordenado do mês no banco e uma tristeza que lhe dava vontade de morrer! Klara não aparecera e apagara a página da rede social! Que fizera ele? Não compreendia!

A mãe viu logo que o filho não estava bem e sugeriu-lhe consulta psicológica. Ele aceitou. Contactou a ex-chefe para se despedir e contou-lhe do seu estado e intenções. Ela devolveu-lhe o livro que ele lhe emprestara e proibiu-o de revelar a relação deles ao psicólogo. Ele não percebeu porquê, mas também não achava relevante. O que importava era a relação dele com Klara. Anuiu!

Sentou-se no sofá, pousou a cabeça no colo da mãe que lhe acarinhou os caracóis, como só uma mãe sabe fazer. 

Mãe! - perguntou ele ao levantar a cabeça e olhar para a mesinha de apoio com o livro que emprestara à patroa. Chegaste a ler este livro?

Um livro do teu avô de Sintra, que muita estima lhe tinha! -asseverou a mãe. Aconselho-te a lê-lo, filho, vai-te ajudar na fase em que estás! Foi deixado ao avô por herança da mãe dele, dos Açores.






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