Ti Milha
A Ti Milha, que não nomeávamos assim, sem rir em coro, eu e o meu irmão, era nossa tia avó e dava-nos o maior mimo! Tinha a azáfama costumeira das mulheres da família naquela geração. Vá-se lá saber porquê, ela e a irmã Amélia, não paravam quietas. Já a minha avó, sua irmã mais velha, fazia as obrigações externas e logo passava para o matutar: era uma máquina dedutiva, uma vez que deduzia da vida dos outros a sua, pelo menos no que tocava à relação com o mundo, pois vivia em confinamento voluntário.
Para visitar a Ti Milha tínhamos de arranjar boleia, o que era raro, ir de bicicleta ou fazer uma viagem ainda grande para as nossas perninhas frágeis. Éramos uns magricelas - o terror da mãe -, que nos enfiava Lipobiase para dentro e se afligia contando-nos as costelas!
Após a viagem, tínhamos lanche rústico pela certa. O melhor pão caseiro, chouriço, linguiça ou presunto, tudo da casa. Doces também, no tempo deles. Ah sim! Havia tempo de doces, rente a festas da comunidade ou algum aniversário, partida ou chegada de um familiar. Uns queijinhos de cabra, também calhavam! O ti António, seu marido, estava sempre a dizer piadas e rir delas, às vezes sozinho. A tia reprovava a sua boçalidade, imprópria para garotinhos, mas nós não ligávamos nenhuma, éramos imunes!
Às vezes íamos fazer excursão ao galinheiro, extrair os ovos ou ver os pintos, ver os porcos bebés, as porcas parideiras gigantes, ter alguma aula de educação sexual reprodutiva de animais pudicamente limada de excrescências desnecessárias, só para arredondar a nossa curiosidade.
Por esses lados, poderíamos passar pela adega, absorver odores indescritíveis e trazer uma caneca de água pé.
Dávamos os bons dias à Ti Rosalina, uma mulherzinha com ganas de desaparecer no negro dos trajes, a curvar sobre si mesma, quase sem voz! Os filhos, rapazes e raparigas eram-lhe o oposto, em garra ou alegria.
Poderíamos depois descansar na cozinha do forno e ouvir a tia desanimada com a sua luta contra as moscas. Ela poderia tirar da panela a sua sopa, que sabia adorarmos, por ter um sabor único, mas havia sempre um suspense da nossa parte: se passados uns minutos de refeição, não guinchássemos queixosos com a picada de alguma formiga, a tia tinha o dia ganho. Muito isso a irritava! Negava o problema, dizia que éramos uns mimados de Lisboa, uns flausinos, ou reconhecia desgostosa a situação e pedia desculpa. Para nós, era uma aventura, como a das histórias dos quadradinhos do sótão, no quarto do primo, mais velho do que nós. Ele era um verdadeiro colecionador. O meu irmão fazia desse quarto a sua biblioteca, mas eu, infelizmente, preferia ficar a lembrar as aventuras proto amorosas das miúdas que conhecia e até das que desconhecia e a espreitar corins tellado. Penso que a tia tinha uma certa preocupação em que encontrássemos algo mais picante e tinha o filho bem instruído!
Uma coisa era certa, se não comêssemos na casa da tia, ela ficava muito ofendida. Como nos chantageava! Nós ou quem quer que a visitasse! Penso que a tia sentia uma certa solidão, com o marido em registo próprio e o filho longe, para estudar. Ela era babada pelo filho, sempre a elogiá-lo. Não havia rapazinho melhor nas redondezas, ou no mundo!
A Ti Milha, em nova, tinha sido uma brasa. A atestá-lo estava uma foto de grandes dimensões na sala. Quem lá entrasse rezava: eras tão bonita Emília! Nós, com sinceridade garantíamos: tão gira, que borracho, Ti Mília!
Era assim, por Ti Mília, que a tratávamos verdadeiramente. Ti Milha era para gozar com a distorção local que o povo mais velho fazia a todos os nomes. E ela tinha sorte, porque havia cada um!