Ir ao T`Zé Moleiro

Algumas vezes, poucas para o meu desejo, acompanhei a avó Gracinda que vinha do Casal do Bosqueiro, onde vivia, buscar farinha ao moleiro do "lugar", como ela dizia, referindo-se à parte central da aldeia.

A avó respirava com dificuldade e tinha que fazer a viagem lentamente,  que era transformada em passeio, visita a conhecidos, atualização das notícias correntes e das mais escandalosas!

Caminhávamos devagarinho, a avó com muitas curvas, a da barriguinha - que não afligia ninguém-, os dois peitos generosos, em movimento de fole; a testa curva e bela como uma abóbada celeste estrelada e calma, o rosto arredondado emoldurado por um cabelo negro, que eu sabia extralongo, enrolado em toutiço e depois as duas perninhas que faziam de armação para as múltiplas esferas!

Ela falava com quem encontrava, como as formiguinhas - fazia uma conversa breve -, talvez para não demorar demais ou porque falar também a cansava!

Eu não ligava nada às conversas, não me lembro de uma que seja! Ficava todo o tempo a olhar para a avó como quem olha para um objeto de amor e a estudar os seus movimentos, tonalidades de voz e ainda a deixá-la  guiar o meu olhar: as plantas, os caminhos. Era quase sempre para o chão e para as pequenas particularidades, que ela me orientava: aromas, ervas, pequenas flores selvagens, ribeiros, texturas... Assim era a avó! E eu caminhava enamorada ao seu lado, sem ver mais nada!

Até chegarmos ao moinho da aldeia, aquele de torre alta.

Aí aparecia o T´Zé moleiro, todo coberto de farinha, pestanas, sobrancelhas, cabelo; curvado, a arquear as grandes garras onde finalizavam os braços muito longos - era um homenzarrão! Toda a pele era esbranquiçada. Nem se conseguia perceber se estava alegre ou triste, pois a expressão era de enfado com a farinha, como se precisasse de tirá-la dos olhos, ouvidos, nariz, mas estivesse a disfarçar e a segurar-se para bem atender a cliente.

Passávamos para dentro do moinho. Eu, curiosa, cheguei a ir ver a maquinaria. Que delícia de rodas e rodinhas, cintas, correntes, movimento inteligente! Encantada, tinha que sair do local contrariada, "por causa do perigo" - dizia a avó. Então, ficava a vê-la negociar o preço, a apreciar deceptiva a qualidade da farinha, que estava a piorar. Saía da avó uma atriz, que eu não conhecia. Era muito firme e regateava, assertiva! Para mim, era uma surpresa, sempre habituada a calmaria da sua alma!

Apreciávamos as rodas de calcário e o relinchar do moinho, ou talvez isso tivesse acontecido mais tarde - quando na casa da outra avó, ali mesmo ao lado do moinho velho - , eu lhe acompanhava as suas lamúrias, solidária e as transformava em musicas hipnóticas. 

Aí já eram tempos de saudade, a avó já tinha morrido, e o T Zé moleiro? Não sabia dele! Nem da farinha que o penetrava, mas que a avó já não peneirava! Até que o moinho de torre se calou de vez e eu, mentalmente me despedi dele e de todo esse tempo mágico e cresci muito, muito! Demais!

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