Amizade Revista .
Quando era pequena, tinha um grupo de amigas na vizinhança e outras que visitava afoitando-se estrada afora, que eram colegas de escola. Mas, um pouco mais nova, ficava apenas pelas ruas adjacentes à sua casa, com as amigas vizinhas e da mesma idade. Menos uma: a Branquela. A mãe fazia um trejeito de boquinha para dizer aquela palavra irritante! Toda ela se lambuzava, como se estivesses em idílio alimentar com alguma guloseima de longa duração no palato.
Quando a rapariga perguntou à mãe o porquê - um ano ou dois depois do forró ter começado - da nomeação de "branquela", daquela estranha miúda, esquiva, que não falava nem brincava com ninguém...ela respondeu que ela era carocha e a outra era branquela: era a cor da pele! Enquanto ela se explicava, à mente inquisidora, levantaram-se várias questões: estaria a sua mãe a chamar-lhe de carochinha como na história do João Ratão?!; estaria a desvalorizar-la ao ponto de a comparar às carochas, que eram da família das baratas, portanto asquerosas?!; ou estava a dizer-lhe que era menos bonita do que a garota que nem sol apanhava? Ela hem?! que andava, naquela altura, livre que nem um pássaro, fizesse chuva, ou sol de torreira?!
Eram tempos de tocar às campainhas e fugir no meio de risadas catárticas. Ou brincar no ferro-velho a conduzir um bólide sem rodas ou meter-se em emboscadas pelas hortas de qualquer um, que ninguém tinha pruridos de dono! A outra miúda não participava. Raramente era vista. Apenas quando ia sair com a mãe e lhes lançava um olhar curioso, meio triste, meio de desprezo!
Mais tarde, a branquela tornou-se sua colega do ciclo preparatório e passou a chamar-se Belinha! As outras amizades desvaneceram-se nos seus horários escolares, novas amizades longínquas e namoricos secretos.
A Belinha tornou-se a sua melhor amiga durante o tempo escolar, entre o atual 3º ciclo e o secundário; a única amiga verdadeira! - disso, estava convencida!Ela tinha muitos complexos por ter peso a mais e pena de não ter irmãos.
Os pais da Belinha receberam muito bem a nova amizade da filha; a mãe chegou mesmo a ser sua amiga também.
A Belinha tinha o quarto cheio de livros, que lhe emprestou ao longo dos anos. Ela foi público para todas as suas histórias, dúvidas e aventuras de adolescente. Foi pela Bela iniciada ao cigarro, esclarecida como se davam os beijos de cinema; levou-a a bailes e ao teatro com amigos da família...estavam diariamente juntas, excepto dia onze de Maio, dia do aniversário da Belinha, em que ela convidava sempre outras amigas de uma zona mais central da cidade. Não se explicava. Era assim! Pedia-lhe para naquele dia não ir à sua casa. A rapariga ficava perplexa e triste, mas a vida haveria de dar-lhe alguma explicação justa, um dia! E depois prosseguiam como nada se tivesse passado!
Uma vez, a Bela convidou-a para irem visitar uma dessas amigas. Ao chegar, pediu-lhe para ficar à espera à porta, porque não ia demorar e os pais da outra não a conheciam. Lá se demorou o tempo que entendeu, deixando a rapariga a deprimir em pensamentos de auto-insuficiência... e a ponderar voltar sozinha! Mas não queria perder a sua grande amiga!
Ela ensinava inglês à Belinha e esta falava-lhe das drogas, do rock e do sexo! A rapariga apertava as calças da Bela para pô-las à boca de sino e adaptá-las à variação de largura de anca, por causa das dietas. E com a Bela, aprendeu ainda, os primeiros gestos rituais e consumistas do maquilhar/ desmaquilhar.
Um dia, aconteceu algo constrangedor: tinham vindo do quarto da rapariga, impecavelmente limpo e arrumado pela sua avó. Já na casa da Bela, a rapariga escondeu-se atrás de uma porta, combinando com a mãe uma partida. Então, a Bela, sentindo-se à vontade, denegriu a limpeza e arrumação do quarto. A mãe, aflita tentava a correção: filha, talvez seja pobre...- sugeria!- Não, mãe - assegurava a Bela-, muito desarrumado! A rapariga e a mãe da Bela quereriam ter encontrado um buraco para sumir e despediram-se todas à pressa sem saber que dizer!
A mãe dela guardava-lhe o correio secreto, porque em sua casa seria violado. Um dia, a rapariga recebeu uma carta de uma ex-colega, de tira negra no envelope, por luto, tendo dentro um postal com um cesto de flores em tons de cinzento e um discurso incompreensível de despedida. Tinham uma relação boa e quando acabaram o secundário tinham combinado manter o contacto - o que acontecera?!
Um outro enigma aconteceu após um baile em que a Bela a levara. A rapariga ficou de se encontrar com um primo dela, com quem dançara e se engraçaram mutuamente. Ele viria ter a casa da prima, que daria o aviso da sua chegada, propiciando o encontro. Mas a Bela não a chamava e ela foi ver o que se passava. Apanhou-a na cama, adoentada. Contou-lhe que o primo tinha estado lá, mas que já se tinha ido embora e que este tinha tido um comportamento muito estranho com ela, acarinhando-a na face e lhe dissera que gostava dela. Confessou-se muito surpreendida!
Mais tarde, quando a rapariga se licenciou a amiga e seu marido chamaram-lhe doutora numa risada e com desprezo!
E depois, na vida adulta, as duas amigas de adolescência afastaram-se irremediavelmente. Não tinham valores compatíveis, não se identificavam mais! Fizeram críticas recíprocas, que mais as polarizaram.
Um dia, muito mais tarde, a Bela procurou o seu contacto na Internet e acabou a telefonar-lhe para o trabalho. Gostaria que revissem os locais de infância. A mulher ficou surpreendida e tentou perceber o motivo do súbito desejo da ex-amiga. Não encontrou nenhuma razão na sua conversa a não ser informá-la de que estava muito orgulhosa por pertencer à direção de uma escola. Levou os parabéns e ficaram por ali, sem mais nenhuma tentativa de contacto.
Foi quando a mulher escreveu as suas memórias autobiográficas, que juntou as peças do puzzle e se apercebeu que a amiga da onça lhe respondera a cartas e interferira no seu namoro! E que mais teria feito por ciúme e desejo de controlo?
De qualquer modo, a Belinha tinha sido incontornável na sua vida! Para o bem e para o mal! Mas não iriam mais ver-se, provavelmente.