Dois Amigos

Manel e Zé faziam dueto: trabalhavam na inspeção judiciária militar, um era generalista e o outro especialista em finança. Faziam parelha divertida em festas e ocupavam os seus tempos livres com projetos comuns. A uma dada altura frequentaram todos os cursos livres da Sociedade de Belas Artes. Quando chegaram à pintura, o Zé exibiu um talento já trabalhado, enquanto o Manel não levava as sessões a sério e fazia umas borradelas.

O Manel era extrovertido que mais não poderia ser e um facilitador para o Zé, de elevada desenvoltura intelectual e modos cavalheirescos. Era incontornável o seu berço culto e burguês. Tinha na verdade uma educação de outra época. Ele já ia nos cinquentas e era o mais novo dos irmãos!

O Manel era do interior e subira pela via militar, aonde fizera os estudos. Era de certo modo, rude. Mas disfarçava com imenso humor.  Era pretensioso exibindo excessivamente a origem familiar da ex-esposa, ou o dinheiro e bens dos amigos. Tudo era por ele hiperbolizado, não se coibindo de mentir para impressionar - às vezes era já apenas por vício.

O Zé era um falso tímido, apenas introvertido, mas um sedutor infalível. Garotas de vintes e moçoilas trintonas, eram o seu prato favorito, umas a seguir às outras. O Manel afirmava que o Zé chegava às meninas da aristocracia. No entanto, ainda segundo ele, era agressivo com elas e mais dia, menos dia, abalavam da sua casinha, que era modesta, muito modesta, mas construída por ele e com uma decoração de túmulo egípcio: pincelada da sua autoria! E se era dotado aquele homem! Formado em duas engenharias, em psicanálise, em economia e belas artes, era um prazer conversar com ele! Nada de aborrecido intelectual - antes, muito prático -, um autêntico mentor cultural! E gostava de tomar café com os amigos, um de cada vez, mantendo o ritual ao longo de muitos anos! No entanto, às vezes, parecia um homem solitário!

O Manel também era mal pago pelo Estado e tivera que comprar casa da outra banda, num bairro recente não afastado de um gueto social!  Claro! Para ele não era perigoso pois andava armado e sabia técnicas psicológicas de desmobilização e persuasão. Tinha uma casa quase vazia. Na verdade, acampava na casa! Apenas o quarto estava mobilado com estilo barato e pseudo histórico. Cheirava a mofo, a casa e ele! Mas não se apercebia, gabando tudo! Era muito poupadinho! Para economizar tempo e dinheiro ficava, por temporadas, num parque de campismo, onde tinha um bangalow. Vivia quase como se estivesse em campanha. O seu traço distintivo era assustador. Gostava de surpreender nos restaurantes ou espaços públicos, com um grito estridente de uma falsa ária de ópera, deixando todos estupefactos, sendo, por vezes, veementemente aplaudido! Adorava! E repetia incessantemente, tornando se um esmorecedor de relações femininas. Elas ficavam embaraçadas e desistiam dele! Era um homem solitário e via-se a lutar contra o stress profissional. Não era simples andar pelo país a investigar, perseguir, fazer entrevistas a potenciais criminosos e persuadi-los a entregarem-se.

Mas, ainda assim, considerava-se o melhor entre os bons e exibia os louvores em diário da república! Para ele, nada estava fora do seu alcance: comprara uma trompete, ensaiara no Hot Club, mas era uma desgraça, tal como na pintura! Achava-se muito culto e sedutor! Na verdade, engalanava o ego e conquistava algumas senhoras interessadas nas honras e benesses de esposas dos militares, mas logo se dececionavam! Por vezes, conseguiam suportar, com humor, os seus desvarios, mas logo ele cortava as pernas aos seus projetos de casamento. Saíra escaldado do primeiro!

Já o Zé via-se à nora com relações instáveis, embora abundantes. Até que um dia adoeceu do coração, assustou-se e arranjou rapariga do seu jeito, e assim ficou, dando ninho aos filhos de ambos, já adultos. Os dele, quase desprezara toda a vida e agora podia ver crescer os netinhos que  se vieram a transformar no estímulo e motor da sua nova vida!

Do Manel não se sabe como acabou, pois deixou de se encontrar com o amigo; pode ser que ainda se vá esganando por aí!


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