Feriado Doméstico

Hoje é feriado. É meio-dia. Estarás a grelhar um entrecosto. Abres a janela para arejar. E aí vem ela, de voz quente, cheia de tónicas e molhada de is, alertar-te para a corrente de ar. E tu lá tens de explicar e mandar fechar do outro lado. E depois, ai porque entram moscas - terás de ser paciente! Mulheres! Ela e as filhas! Melhor do que com os teus rapazes, caladões, cada um para seu lado. E viras a carne. É a tua função. Já tens apetite, com o cheiro forte do grelhado! Imaginas o acompanhamento de um bom vinho - nisso não te metes - é a especialidade dela! e a sesta que se lhe segue, encostado às suas partes inchadas, à pele. Ris-te para dentro de ti. 

E elas põem música da sua terra - e tu dás outra sugestão, mas não ligam e riem muito, desaforadas. E tu nem te importas que de pisem um bocadinho, desde que te possas vingar depois à sesta.

E começam o almoço, toalha de pano na mesa, ao som da TV, o vinho explicado com is molhados e tu a pensares noutros molhos. Ris-te, agora alto. O que foi que deu em você? que é? E lá dás uma desculpa qualquer, pois elas já nem estarão a ouvir na voracidade de competirem pelo tempo de falar.

E levantam-se da mesa e lanças-lhe um olhar cúmplice com um raspão de quadris enquanto enfias o garfo na máquina da loiça e ela o prato. E ai e ui que deve ser do vinho ou do calor, que tenho que me ir estender um pouco - explica ela às filhas.

E depois, por causa daquela treta do problema cardíaco que te deu há uns anos e da digestão, ficas pela humidade dos is e ais e uis pequeninos até que pendes para o lado errado ou certo, em oposição a ela, e a agarras como se fosse fugir, pelas partes finas, ampliando os balões simétricos do seu corpo. Adormeces. E depois, que já se fez tarde, vais ver da máquina da loiça e lês uns jornais internacionais na Internet e pensas se é esta a vida que queres! E se te envolves com mulheres que são mães e não dás hipótese às solitárias, é porque tens défice de ser filhão. E não é que és o filho preferido delas? Os outros são independentes ou a adolescer, lá querem as momices que ela te dá? Os beijinhos?! São todos teus e nunca são demais! Ris-te a pensar na tua psicanalista, que namoriscaste, mas lá está, não era maternal!

E depois dos jornais comentas e protestas, mas elas não ligam, até que ela, a doce que te mima, com pena, te dá os ais e uis em uníssono contigo numa empatia que te faz um arrepio fininho na espinha. É isto que tu queres?! perguntas-te muito baixinho, no fundo lá longe, do pensamento. E depois ela abre aquele riso largo cheio de dentes branquinhos e os olhos de índia atrevida e tu deixas ficar o assunto pendente, mas desaparece o frio na coluna, esse guia do corpo e da mente. E ficas, pacífico, dentro das tuas contradições.


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