Um Estripador em Lisboa - Criminal Profiling

O prédio ficava disfarçado na pacata rua, perto da avenida arterial da capital. A sala pequena, ainda assim com a dignidade de sala de reuniões, com cadeiras estofadas e estafadas do tempo e do nervosismo habitual dos inspetores. Cheira a tabaco de cachimbo, aromatizado, numa mescla pior por fundo, mas Clara concentra-se na bondade de tudo, orgulhosa que está de ter chegado até ali!

- Estamos aqui reunidos para reabrir, com fins pedagógicos, o arquivo do processo já prescrito do Estripador de Lisboa, dizia no papel de coach, o inspetor da PJ. Vocês, como jovens profilers, irão fazer uma chuva de ideias sobre as características físicas e psicológicas do perpetrador do crime! Vou dar-vos um promp: acredita-se que o criminoso agiu sozinho e não repetiu o crime! Daí ter sido tão difícil apanhá-lo. Até agora, impossível mesmo! Clara?

- Sr. Mota, pelo tipo de crime, sexual, creio que o motivo estará relacionado com esse tema, mas será de natureza não comportamental por parte da prostituta. Ela apenas estava ali!

- Pedro?

- Eu penso que seria um homem, pela força exercida e a manipulação do corpo, e com competências de corte, mesmo que não seja de carne - não precisa ser um talhante ou um cirurgião...

- Otávio?

- Sim, concordo, um homem com problemas sexuais... Mas incompreendido.

- Posso, Sr. Mota? - interpela o Rui - penso que a incompreensão só seria forte a ponto de destrambelhar o homem se fosse da parte de alguém muito significativo!

- A família ou alguém da família! Disse Clara.

- Sim. Um homem que sabe cortar com precisão e quer para si os órgãos sexuais da mulher. Afirma Otávio.

- Reparem, disse o Rui, não era bem o sexo, no sentido do ato. Era o género! O homem invejava o género feminino e isso não era aceite pela família.

- Teria uma aparência trans? Vestiria como um travesti? Nesse caso, a prostituta confundira-o com um concorrente. Talvez tivesse atacado o homem! E ele, na luta, matou-a e só posteriormente se lembrou de.... não, não faz sentido! Ele tinha o equipamento específico. Bisturi. Ia preparado! 

Clara acenou a Pedro para que continuasse, sentindo-se agastada.

- Bem, então voltamos a hipótese de ele a ter abordado enquanto homem e a ter morto com intenção de a desventrar - remói Pedro!

- Coach: - aquela ideia da origem da frustração....

- Ah sim, diz Clara. E se o homem nem sentisse à vontade para contar, ou sequer dar a entender, ainda ficaria mais frustrado! Viver uma vida dupla. Não haver ninguém com empatia com ele! Nem um outro, com problema idêntico!

- Aqui o Rui pensa que o homem era um solitário! Vivia  com a família de origem e devia parecer pacato. Bem, não estou certo!

- Olha o Pedro acha que ele deveria ter uma aparência fria. Reparem que conseguiu ir até ao fim e não dar nas vistas. Ou então alguém, um familiar, até soube ou pressentiu, mas escondeu!

Clara sai-se com que talvez o homem fosse amado em família, mas um amor condicional! E se alguém soube e escondeu, talvez fosse esse o modo de funcionar daquela família. Ter segredos, fazer vidas duplas.

Otávio: - talvez tivessem uma aparência de felicidade, mas histórias podres, alguma perturbação familiar e ou de alguns membros! Talvez o homem já estivesse em psiquiatria. Mas mais não conseguimos acrescentar, com o que temos no arquivo!

Na reunião seguinte, Clara avançou que fizera alguma investigação extra: queixas de mulheres por violência. Eram aos milhares! Mas depois filtrou por famílias com aparência social diferenciada e diminuiu significativamente o número de casos. Ainda assim, muitas centenas. Também tinha sido problemático o leque temporal.

Depois confinou a bairros de classe média alta perto de Monsanto! Leu dezenas e dezenas de participações. Reparou numa sra. que fez várias, num dado ano e retirou-as todas e que vinha sempre com um filho rapaz. Verificou que o rapaz tinha um cadastro limpo mas que em homem, já nos quarentas, tivera uma queixa na ilha da Madeira. A mulher que o acusava dizia que estavam de viagem e que do nada ele ameaçara atirá-los de carro pelas ribanceiras fora e que até estacionara e desaparecera para se autocontrolar. A mulher pediu apenas para saberem dela à noite, para verificarem o regresso, caso ela não telefonasse para eles. Mas telefonou e o caso fora arquivado em papel. Até um estagiário de um curso profissional de informática o ter digitalizado e estar agora num banco de dados para investigação científica, sobre queixas de violência doméstica retiradas. Porém, nesta situação, o homem parecia impulsivo, mas também com um certo autocontrolo. O que admirara Clara foi a mulher ter dito que fora a única vez que o vira transtornado, que talvez estivesse deprimido e que tinha consultas em psiquiatria e tomava medicamentos...

- Pode não dar em nada! Acrescentou, quase um pouco envergonhada por ter ido além da sua função!

- Clara, disse o Sr. Mota. Por agora vamos esquecer a tua iniciativa fora da equipa! Mas, carissimos, fixemo-nos no caso que a Clara trouxe! Um homem com ideação suicida, com doença mental! Uma família com passado de violência doméstica... Ora escutem esta história que nos foi enviada para a PJ - anónima -, em jeito de conto. Escutem, vou ler! Título: Em Família.

"Duas raparigas e um rapaz, pai e mãe, viviam nos arredores de Lisboa, num local cujo crescimento populacional levou à sua ascensão a cidade. A mãe fazia costura para fora; o pai era empregado bancário. 

O homem teve a ideia de fazer uma sociedade criminosa com uns conhecidos e passar informações úteis para ganhar muito dinheiro repentino na bolsa de Salazar. E assim foram adquiridas diversas vivendas em locais de certo charme e um extenso apartamento em zona nobre da cidade de Lisboa. Seguiram-se viagens, aristocráticos hábitos e clubes para o pai. Os garotos deram-se mal com as mudanças, particularmente os dois mais novos. Os pais brigavam a torto e a direito. A mulher, aborrecida com o chorrilho de amantes; ele, sem paciência! Acabava tudo à murraça. A mulher achava que o filho esquelético, por ser homem de 13, 14, 15 anos, iria defendê-la do marido, mas este escondia-se, apavorado, debaixo dos lençóis. 

Confusos, rapaz e rapariga mais novos, experimentavam os seus corpos ignorando a consanguinidade. Mais tarde, o rapaz sucumbiu ao remorso e cada vez mais confuso recebia queixas escolares em catadupa. Reprovava anos atrás de anos. 

Um dia, a mãe desesperada, dirigiu-se para o rio ali próximo, convencida de que o rapaz lhe seguiria o rasto, bradando na rua ameaças de suicídio, mas ele retornou para casa quando lhe começaram a faltar as forças mas pernas para correr atrás da mulher tresloucada. Ela, às vezes, dizia aquelas coisas da boca para fora. Sentindo-se mais uma vez indigno, escondeu-se debaixo dos lençóis, como sempre! 

Ela retornou passadas uma horas "salva por um Senhor, que percebeu a sua situação". E nunca mais perdoou o filho! Considerava-o um cobarde. 

O castigo do rapaz foi ir para um colégio interno bem longe de casa. Lá, ele aprendeu a assaltar casas e a vadiar, principalmente na noite de domingo, depois da chegada do fim de semana em casa, pensando o colégio que o grupo de adolescentes só vinha na manhã de segunda-feira. Por vezes, também saltavam pela janela. Havia uma cumplicidade com o guarda noturno. 

O grupo sofisticou as suas técnicas e organizou uma fuga por mar com o espólio. Foram apanhados nos últimos dias de preparativos, já recolhidos numa das vivendas violadas, desabitada na altura. 

O homem, com o poder do dinheiro e o seu aspeto muito digno, suplicou por perdão, que fechasse os olhos a justiça, que ele trataria do filho. E assim foi: o pai fez um esforço educativo durante meses, através de prolongadas conversas sobre valores. O rapaz não mudou logo. Tinha ficado com o vício do furto. Costumava retirar qualquer coisita na tabacaria da vizinhança. Até que se transformou para sempre e, em grande arrependimento, nunca mais tocou no alheio nem na irmã. Desenvolveu uma neurose. Teve alguns acompanhamentos psiquiátricos avulsos ou temporários. 

Para além de uma história inqualificável, sentia-se mal na sua pele, e, às escondidas, acumulava literatura homossexual. Nunca foi capaz de partilhar este facto com a família e sempre foi tendo relações anémicas com namoradas. Viveu muitos anos da sua vida adulta com os pais; já ia nos quarentas e tais quando arranjou casa independente. Conseguiu tirar o curso de topografia, que exercia. Os pais viviam separados dentro da casa, cada um com o seu espaço, embora a mulher continuasse a servi-lo como empregada. Ela e a outra empregada, a quem pagavam. 

Nas muitas reuniões de família, já com netos e genros, o disfarce era eficaz: uma família acolhedora e feliz! 

A filha mais velha casara com um homem de negócios. Sussurrava-se que este enganava umas velhotas, donas de um colégio. A verdade é que conseguia manter uma bela casa e tinha empregada interna. Mas com o tempo, deve ter querido chegar mais alto, e casou-se com uma dessas ditas velhotas, que afinal é apenas um dúzia de anos maior do que ele - não que não se note -, mas parecem ter uma vida engraçada. Ele finalmente expõe os seus quadros de estilo realista e mantém o sorriso amplo de sempre.

A mais nova, ainda namoriscou com o patrão, dono de empresa financeira - Quinta da Marinha... -, mas não se safou! Tentou mais um com vivenda na outra banda, mas sofreu de violência doméstica e divorciou-se. Depois casou com um Senhor "com bom nome, de família", simpático, mas também se divorciaram. 

O filho homem, continua a disfarçar e a apresentar namoradas. Foi há muitos anos atrás, durante o percurso da ponte sobre o Tejo, de regresso da casa de férias da família, que o choro irrompeu e a angústia o dominou: então ele decidiu procurar já em solo firme, consolo num travesti. Inábil, deparou-se com uma mulher. Sentiu-se o ser mais miserável ao cimo da terra! Depois disso, à noite, não conseguia dormir e fazia corridas pela mata de Monsanto. Um dia, transtornado, voltou a casa para buscar o carro com o equipamento de trabalho e foi ao encontro de uma prostituta. Extraiu-lhe os órgãos sexuais internos, aqueles que lhe faziam falta para se sentir ele próprio, mas que não ousava pedir ao mundo. Por causa da família! 

A justiça nunca encontrou o autor do crime!"




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