O Homem do Pífaro

O homem chegou e sentou-se nos degraus do pelourinho, no meio da praça medieval! Olhou à sua volta e apreciou os vasos de flores pequenas e coloridas a penderem dos "balcones" de madeira em talhas caprichadas; as casas de pedras retangulares de granito escuro exibem a intimidade húmida nas frestas. Viu a hera da floreira, que está na esquina da praça com a rua Alonso, trepar para sair dali, pelos ares - pensou, mas duvidou. À esquerda, a loja do alfarrabista e ao lado, a das velharias; já por trás e sem olhar, lembra a farmácia, logo seguida da ervanária - não sabe se a Zertolinda ainda lá lança as cartas. Do outro lado, só há portas cerradas, com batentes de chamar, sem uso. Nos andares de cima, em toda a volta - menos nas casas fechadas -, já não sabe se conhece alguém. É onde cuidam das floreiras, talvez mirando a do vizinho para que não seja a mais linda.

Faz uma brisa fresca, é fim de tarde de outono, poucos se atrevem a ver o sol partir - fecham-se nas suas casas -, e ele por despeito ou não, até já se encolheu atrás de novelos de nuvens, desmaiando em radiais oiros estelares.

O homem não traz chapéu e vem resoluto arejar a cabeça redonda e calva, e nas mãos recusa as luvas, porque precisa delas nuas para tirar da sacola o pífaro, que em breve irá tocar. A cabeça a esfriar dedica um minuto à escolha da melodia e, sem esforço, o homem limpa o bucal e inicia a serenata. O som, primeiro fica às voltas do pífaro, depois do pelourinho, e então, toma balanço e traçando caprichosos percursos vai visitar os vizinhos do primeiro andar e do segundo andar e alguns em sótãos, para finalmente descer e espreitar a ervanária, a farmacêutica, as lagartas da hera, os gatos enroscados e sonolentos do antiquário e alguns ratos a aproveitar a folga felina. Os passarinhos não dão de si, mas escutam atentos. E vai para mais frio e desbota o sol os derradeiros filamentos de oiro e o homem avança firme no dedilhar incansável das emoções alheias: porque a mulher na escrivaninha ergueu a cabeça, deu um gole no chá de camomila, respirou fundo e digitou com mais afinco letras de palavras de histórias que vai publicar; a atriz reformada, debruçou-se à janela e piscou o olho ao homem, não sabe se do cisco ou porque lhe apeteceu chamar o pífaro para os três dançarem e beberem até caírem para o divã - e depois ele iria embora com uma sopa quente no estômago!- era só isso! era só isso! - pensava, defensiva! E a Rosita, tão apaixonada e triste de saudades, ouvia o pífaro a chorar pelo seu amor, tão sentido no dar e tão duvidoso na devolução!... O insano Murilo, a deambular dormente por dramas irresolúveis, sorri e segue esperando no inverno, antes do Natal, já ter a Paloma arrependida à porta, para voltar à felicidade do lar com o seu homem.

E o traçado da melodia segue, visitando um a um. Ao homem que sopra e dedilha, tanto se lhe faz a hora tardia, ou o gelo das extremidades, enquanto chegue, em alento, à vizinhança da praça medieval. Mas depois pára - eles distraídos com amores, telenovelas e a verificar se as batatas estão cozidas!

E sai, sem ninguém dar conta, nem a atriz, que já adormeceu com o comprimido que o psiquiatra lhe receitou e o gato, aproveitando, aconchega-se-lhe no regaço.

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