O Suicídio Suspeito - Criminal Profiling

Chovia como se S. Pedro tivesse tirado a tampa ao céu. Era impossível segurar um guarda chuva. Clara optou por fechar o seu e chegar como um pinto ao prediozinho da rua esconsa ali ao lado da grande avenida da capital. O local lembrava um refúgio secreto à rapariga, que dava por si em grandes elucubrações paranóides desde que começara o estágio, mas logo se ria da sua distorção de pensamento. Chegava! O porteiro de bigodes revirados e desatualizados depressa a socorre e lhe oferece um fato macaco que têm das obras. Aconselha-a a vestir dois, um sobre o outro e dar-lhe a roupa que ele iria tratar de a secar - só o Sr. Javier!

Na sala de reuniões já está a equipa completa e vestida de fato macaco, - a expressão de Clara, ao entrar, provocou uma risada geral! Ela acena com um sinal pouco sério de desculpas e todos relevaram, inclusivamente o Sr. Mota, o coach.

Então, inicia o mestre, já que podemos começar, apresento-vos o desafio de hoje. Temos em arquivo uma denúncia anónima em que se considera que um homem, médico, levara a ex-mulher ao suicídio, tendo uma influência direta e alegadamente intencional, pelo que poderia consubstanciar um crime! Esta parte que vou dizer agora, não sai daqui, mas, a mulher tinha um irmão com conhecimentos no meio e conseguiu-se umas escutas, do homem e dos filhos, ou melhor uma leitura de mensagens dos telefones, SMS, e ainda as comunicações das redes sociais, nos tempos que antecederam o suicídio e não se encontrou nada suspeito. Antes pelo contrário!

Ora a nova chefe de investigação de casos perdidos, como se autodesigna carinhosamente, acha que temos aqui matéria para usar a massa cinzenta dos nossos honrosos estagiários e dá uma dica: usem o conhecimento da disciplina de psicologia. E metam-se no Facebook a investigar. Claro, com o que um cidadão comum pode ver! Não há abébias!

Nomes, endereços - aqui têm! Toca a trabalhar!

Sr. Mota, interpela Clara. Pode mostrar-nos o texto que foi investigado? O dos SMS e tal?!

Muito bem! Estava a ver que não pediam! Pois aqui está. Como podem ver, o homem instruía um dos filhos que falava com a mãe, para a proteger e ajudar, já que ela estava deprimida.

Também quero acrescentar que o familiar informou que o homem estava prestes a terminar a relação mais recente, em que estava desde que se separa da mulher e que na altura do funeral e nos dias seguintes não mostrou especial emoção e até escreveu mais e com humor para um jornal onde era cronista esporádico.

Os jovens embarcaram num esquadrilhar de postagens, dos três homens e dos seus amigos na rede, leram os artigos do jornal referidos....e cruzaram informação. Ficaram com dados soltos: sabiam quem era a segunda mulher, que a primeira não tinha página de Facebook, que o homem gostava de postar links políticos, livros e música...mas nada esclarecedor e que os artigos estavam realmente temporalmente muito próximos do suicídio e era verdade que um deles até tinha humor, uns quinze dias depois do sucedido e ainda por cima rente ao Natal. Viram ainda que a tese de mestrado de um dos rapazes não referia a mãe nos agradecimentos, o que era sinal de má relação.

Já era noite quando Clara, nas suas roupas enxutas, apanhava táxi para ir para casa, cansada e desmoralizada.

Chegada, apenas comeu uma sopa quente que a mãe fizera e comentou por alto o caso, sem nomes! A mãe conhecia uma situação ou duas de suicídio de mulheres divorciadas...havia uma que ela recordava bem, porque a amiga Zini fora empregada dessa família - era uma professora universitária que vivera uns anos bons com um médico a quem a ex se suicidou e que ele não tivera a reação normal!

Ah pronto! Afinal é vulgar! Disse Clara à mãe, como que a despachar conversa, pois estava exausta!

No dia seguinte, já com sol radioso, a equipa apresentou-se antes da hora...Hola, Hola Javier- repetiram os cinco, o Sr. Mota incluído!

Bem, vamos ao briefing e chuva de ideias. Clara? As senhoras primeiro, sempre! Uhhh ululavam os rapazes com humor!

- Bem, sabemos que o homem não parece ter-se comovido com o suicídio da ex-mulher, que vivia com outra, embora a relação estivesse a acabar e que, estranhamente, ele aumentara a produção literária e fizera artigos de humor, o que indica uma personalidade fria. Talvez psicopática.

- Posso?! Diz o Pedro! O que me intrigou foi a tese de mestrado do filho mais velho não referir nos agradecimentos a mãe, e até menciona os avós. E viveu sempre com ela...bem... menos nos últimos anos, em que se tornou adulto!

- Olhem, diz o Octávio - penso que este sinal é importante a juntar ao facto de o homem comunicar com a mulher pelo outro filho. Dá a impressão que filho mais velho e pai não se davam com a mulher!

- Ok! Diz o Rui - temos realmente registo de problemas que foram a tribunal de família! 

- Ah!, exclama Clara- reparem que quase não há intervalo entre o divórcio e o início das mensagens da segunda companheira do homem, no FB. Talvez o caso já fosse anterior e carregasse desgosto à ex-mulher. E ressentimento!

- Acho - cogita o Octávio -, que eles também tinham alguns problemas financeiros: ambos com empresas, ambos médicos e cada um com sua empresa, sem ter o outro como sócio. Não sei...podia ser apenas uma estratégia financeira...

- Acredito, diz o Rui, que havia aqui problemas antigos entre este casal e que os conflitos envolviam os filhos.

- Outra coisa interessante é que o homem saiu da sua casa de Oeiras e comprou, com os filhos, uma em Lisboa. Portanto com o dinheiro herdado da mãe ou contando com ele! No Facebook nota-se que o homem está muito orgulhoso de ter casa em Lisboa. Muito mesmo! Diz o Octávio a coçar a cabeça.

- Mas é um móbil tão fútil! Alguém sugestiona um suicídio a uma ex-mulher para os filhos ficarem com dinheiro para comprar casa numa capital?! É insano! Brada Clara.

- Não para um psicopata! Assevera Pedro.

- Olhem o que eu descobri, malta! O homem tem a mesma empregada que a ex-companheira. Uma angolana. Será que é para se espiarem mutuamente?

- Não, nada disso! Ele é que ficou com a empregada dela. Olha aqui elas numa foto e dizem que são amigas de há longa data! Talvez o homem, naquela fase do suicídio, nem soubesse que a nova companheira ia acabar a relação.

- Isso só aconteceria se a relação fosse instável! Tipo pega-larga! Portanto o nosso doutor é conflituoso nas relações.

- Nesse caso, a ex deve ter sentido alívio...ou não, pois as relações que envolvem alguma violência, mesmo que só psicológica, podem levar aos ciclos viciosos conhecidos e serem muito difíceis de resolver!

- Eu notei que o homem tem vídeos que repete bastante! E um deles é sobre suicídio e foi um mês antes que o postou! Mas continuou a postá-lo de vez em quando! É da Lana Del Rey. Não sei se conhecem: é Summer Sadness.

- Hummm! Isso é extrapolar demais! Avisa o Sr. Mota!

Clara foi para casa mais confortada e fez a refeição completa! Hoje sim - informou a mãe do sucesso das pesquisas, sem dar pormenores! 

A mãe disse-lhe que se lembrara que Clara conhecera a amiga Zini, no restaurante africano.

- Aquela Sra. angolana, muito bem humorada?

- Essa mesmo!

- Com uns diabos! Devo estar com sono!  E ela trabalha para quem mesmo? 

- Para vários, mas o que pode interessar aqui é que trabalha para um casal que se separou, ou seja, vai a casa de cada um, e ao homem aconteceu o suicídio da ex anterior. Podíamos arranjar uma entrevista com ele, dizias que eras estudante. Podia ser que colhesses alguma informação sobre esse tipo de situação.

- Ah não, mãe. Isso não é assim! Não conheces a profissão da tua filha! Francamente! Pensas que é uma telenovela?! Mas podias convidar a Zini para vir cá a casa e não iríamos falar do caso que ela conhece, mas apenas chamar o tema!

....

Bem, hoje vamos analisar o conteúdo dos SMS do pai para o filho a referir-se à mãe no pré-suicídio, disse o Mota, que já se deixava tratar assim pelos simpáticos e competentes estagiários.

- Mota, ouviu-se da voz de Clara -, ainda não nos disseste como foi o suicídio, quem encontrou a mulher, se ela vivia sozinha, se deixou alguma carta...

- Ohohohoh pois não, meus precipitados! Não haveis questionado! Foi enforcamento! Podia ser com medicamentos, uma vez que era médica, mas foi com a técnica intemporal, embora a mim me pareça medieval...e que se saiba, não deixou carta! Foi o filho que a encontrou, o mais velho, que ela chamou de urgência, apesar de não se falarem ultimamente.

- Que horror! Parece retaliação! Mas não deve ser. Tanto desespero. E ela não ia a psiquiatra ou psicólogo? Pergunta Octávio.

- Pois, que se saiba, não ia! (Mota)

- Então, como teriam sido os últimos dias dela? Vamos tentar reconstruir?! (Rui)

- A doutora estava de baixa, portanto não era observada pelos colegas. Recebia a visita do filho que com ela se dava. (Mota)

- Ah e o contacto com o ex-marido seria talvez por intermédio do filho mais novo, aquele que se dava com ela! E a questão é se o homem poderia ter influenciado a mulher para se suicidar, através do filho. Que disparate! (Octávio)

- Mas de onde veio esta desconfiança?! (Clara)

- Veio do irmão da mulher porque ela lhe confidenciara que ele agia de modo indireto, manipulando as pessoas, incluindo os filhos, mas que o mais novo, não se deixara levar! A mulher contava ao irmão que espreitava o ex nas redes sociais pensando que ele não sabia, mas depois se apercebeu que ele lhe mandava mensagens pelos vídeos musicais postados, que referiam aspetos da sua vida passada em conjunto, a denegriam, ou a provocavam com ciúmes. Sim, porque ela, apesar de se sentir maltratada por ele, não conseguia deixar de amá-lo e odiá-lo ao mesmo tempo! Era uma relação perversa! Ela ainda nutria alguma esperança, no início da relação dele com a outra, mas depois foi deprimido, à medida que o tempo passava e eles continuavam juntos. Era uma história antiga, ainda do tempo da faculdade, em que os três pertenciam ao mesmo grupo e ele ficara obcecado por aquela que se tornou a sua segunda companheira mais tarde, mas fora a primeira namorada. Isto, apesar de se ter casado e tido filhos com a suicida. Foram vinte anos - uma vida, de ciúmes. (Mota)

- Ui! Móbil: acabar com uma perseguição doentia da mulher e ou poder comprar casa mais cara. Quem sabe, a suicida não interferia na relação do novo casal? (Pedro)

- Posso acrescentar que o homem não vivia a tempo inteiro com a nova companheira. Mantinha casa, onde ficava em semanas alternadas com os filhos. O ex-casal já tinha guarda partilhada! Parece que a nova companheira não gostava dessa separação semanal e que isso foi uma razão para terminarem. Tudo isto, foram informações do irmão da suicida! (Mota)

- Então, só nós falta ver os textos dele nos SMS e Messenger...(Pedro) 

....

- Ele sugere que ela não vá ao YouTube buscar ideias, que não lhe passe pela cabeça disparates - chama-lhe, disparates, vejam!, que vá a um psiquiatra, que tenha cuidado consigo, que aquele estado era perigoso, pois estava sozinha, perdera o marido e o filho, e que precisava por isso de ajuda....Isto é o que se extrai, com o pormenor de pedir ao filho que dissesse isto em seu próprio nome, sem revelar que o pai o aconselhava. E foi isto! (Pedro)

- Mas é óbvio, salta Clara da cadeira - lembram-se de falarmos nas técnicas hipnóticas de Milton Erickson?

- Aquelas indiretas?! Ah sim! E que também foram aproveitadas pela programação neurolinguística e usadas muitas vezes em manipulação, propaganda e vendas! Mensagens que contêm sugestões ou comandos que atuam no subconsciente! (Octávio)

- Meninos, o caso ainda não foi aberto e não aconteceu há tanto tempo, que tenha prescrito. Vamos a isto?! (Mota)

- Parabéns, malta! Este não era fácil! Aliás, não será fácil, precisamos de especialista em Hipnose, a estudar o caso! Temos também os vídeos com sugestões, no Facebook, mas há que gravar, antes que ele se aperceba e apague! Como se faz isto mesmo, Mota?! Como é que a PJ trabalha com as redes sociais? - Questiona o Rui cheio de entusiasmo.








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