O Tico e Ela
O Tico foi salvo da boca de um cão, ainda em bebé, já depois de outro da ninhada não ter tido essa sorte. A sua protetora foi a mulher a quem gastei o nome de mãe: ó mãe! a torto e a direito!
Talvez pelo stress dessa vez, o gato ficou com eterno medo, curiosamente dos humanos, excepto da mãe dele e minha, de quem era tão carente que chegava a aborrecê-la. Fugia de nós, da família, já visitantes, ou mesmo do meu pai que com ele sempre habitara!
A mãe, mesmo quando ia perdendo a vontade de cozinhar para si - porque era seu objetivo e prática de vida, dar, fazer para os outros, mimá-los com comida e manutenções várias domésticas-, a mãe, dizia eu, fazia comida humana só para o gato que gostava de guisado e claro, de peixes vários.
Ela repetia, sem sentido, que tinha dois receios: ficar dependente dos outros - e pedia que na sua hora a levassem rápido - e que o Tico ficasse, por lá, desamparado. As vezes que lhe fiz o reparo, pois se ela era nova, ainda de sessenta e muitos - e o Tico tinha vida curta de gato! Mas ela previra bem!
Após um período valdevino, que custa perdoar ao sistema de saúde, às suas unidades do Oeste, parecido com os pesadelos da mãe, em que andava em confusões e andanças sem sentido e perdia sempre a razão - ou os outros lha tiravam, embora ela não tivesse nunca perdido o tento - essa irracionalidade, essas injustas e desconcertantes trocas baldrocas, aconteceram mesmo pelos muito ilustres doutores da mula ruça! E, depois, quando finalmente, em Santa Maria lhe deram a assistência de que precisava, ela não mais pôde falar, entubada; ainda sorriu, aliviada, nos primeiros dias, mas depois desconfiou, e o enfado e dor - viam-se as feridas nos lábios, do roçar dos tubos, e ouviam-se as conversas de uma dezena de médicos; e as companheiras de quarto em estado grave que entravam e saíam, com as conversas igualmente graves que aconteciam à sua volta; eu de tonta a imitar o filme da Teoria de Tudo, com o alfabeto num quadro e uma vara para ela apontar - mas não tinha força à custa da morfina! E eu a maldizer-me - e ainda hoje me rogo pragas, pela impotência - que não consegui furar a imensa burocracia e frieza - para que nos cuidados intensivos, onde muita gente se fina e ainda está consciente e sem poder comunicar, se possa usar telemóvel em wireless: ou então ponham cabo! arranjem fixo! Raios!
E perderam-lhe a roupa, nem se sabe onde, e o gato chorou dois anos, sem dar mão, e já no último começou a permitir ser acarinhado no pêlo, e eu só o fiz uma vez, que me permitiu muito a receio, e veio a maldita pandemia e o meu ombro congelou não permitindo a viagem. Quanto eu queria afagar aquele pêlo do irmão animal! E o Tico era um grande amigo do meu gato filho, o Tommy, cuja saudade não me deixa substituí-lo!
E é assim, o amor não se gasta! Não são os animais que substituem os humanos, como muitos apontam o dedo! São os humanos que não se deixam amar, tão cheios de si, fazem como nas compras: querem o menu, provar, escolher, usar e deitar fora! Admirem-se de quem ama os animais! E até entre eles, resolvida a alimentação e em paz de espírito, ultrapassam a barreira da espécie e se dão de forma harmoniosa, diferente da tradicional relação de predação!
O adeus ao Tico faz-me chorar rios de lágrimas: por todos nós da família, vivos ou já mortos, animais humanos ou não! Pelo tempo que se foi! Pela frieza das pessoas, compradoras, mais que gente!
Adeus Tico, adeus mãe, adeus Tommy. Obrigada mano e Vera!
O Tico era um gato grande e bonito, cinzento com listras de pinceladas chinesas! Vínhamos no carro, da urgência das Caldas com a mãe, eu para animá-la mostrava-lhe um vídeo engraçado com gatos e ela respondia: não me interessa! O meu gato é o mais bonito de todos! E calava-se! Eu calava-me também, atónita, sem palavras, sem compreender isso, e ainda aquela saída dela: os médicos não percebem! Os melhores médicos somos nós próprios; nós é que sabemos se estamos doentes! E depois vimos que ela sabia tudo, os médicos negavam a doença e o seu gato era especial, sim!
Adeus Tico e mãe!