Uma Casa de Férias

A casa de férias foi outrora de uma família. A veraneante sabe de dramas passados, mas tal não lhe desperta nenhum sentimento negativo. Procura algum sinal plasmado na mobília, em recantos, objetos, cheiros, mas só sente a vontade da dona de torná-la bonita, confortável, uma extensão de si mesma e da sua maternidade! Se sofreu - ora, sabe-se que sim!- levou essa dor consigo, porque aqui só deixou tranquilidade, acolhimento. 

A casa tem personalidade e os objetos que ficaram da mudança - sem glória, na sua anomia -, não deixam de compor um todo que a acalma, sem que nada se destaque. Compacta, a casa recebe-a num abraço caloroso sem afetos negociáveis que a prendam a reciprocidades... Diria que ali jazem as mães do mundo com o seu amor incondicional e ela é a sua filha felizarda!

O sino da Igreja próxima pontua o tempo cortado em fatias finas; os bêbados da taberna da esquina eternizam cada ano no seguinte - são sempre iguais nas suas alucinadas conversas: murmúrios, espasmos, declarações, zangas! As crianças, nas traseiras, são eternas também, gritam, guincham, exclamam - é tudo tão enfático! Daqui a uns anos estarão cá como mães e pais de outras crianças iguais.

O sino fatia o tempo todo, de cada ano repetido. As décadas revezam décadas, só os nomes das ruas vão mudando: rua tal, antiga rua tal ...sinal de que há eleições e somos um povo livre a viver em democracia panfletária.

E a dona da casa tem os seus hábitos, a família alargada e os amigos e os conhecidos e os seus descendentes, numa árvore de afeições que não conhecemos nas grandes cidades. Mas ela é Outra! Os olhos dos bêbados embicam na forasteira! Faz parte da reciclagem de hóspedes, também para eles, ela é outra igual a tantas alugando a casa há décadas.

Quando sai, enfia-se em qualquer ruela - há tantas à escolha!, e as janelas que dão para aposentos de alguém que batiza descendência de tempos a tempos têm histórias partilhadas, mais pelos iguais, sendo incertas do seu valor para quem poisa e parte! Mas ela gostava de saber se as gaivotas que hoje gritam, são bisnetas das que os pescadores da casa de barras azuis alimentavam depois da lota e da madrugada de pesca! Ai se esta terra quisesse conversar com ela e não se encerrasse por trás das cortinas das janelas pequenas e tímidas, interesseiras com o seu andar de cima alugado e novos telheiros da moda, que o Ti Jaquim também tem, ó Manel temos que fazer um!

Riem as gaivotas perto dos restaurantes dos pescadores e trazem as gargalhadas e as lamúrias para a noite da mulher, com o sono difícil - que estarão a fazer? Que emocionais! Ou é ela?! E as gaivotas apenas comem, dormem, reproduzem-se, nascem e morrem?! Não acredita! Não é difícil imaginar que querem conversa, que elas também sofrem de insónia, que o sino as acorda de madrugada, que os bêbados e as suas mulheres preocupadas as deixam ansiosas! Ou é porque os filhos partiram? Ou há guerra de gaivotas por este naco de terra tão cheio de vida fácil, a ria farta, o mar tão perto?! Sabem nada as gaivotas! E se soubessem, ninguém as quereria ouvir! É demasiado! É assustador o tempo de cada espécie, de cada indivíduo! A morte certa! O eterno em retornos indistintos, a perder-se na memória! 

As ruas mudam de nome para iludir o tempo, marcá-lo com um antes e um depois para fingir que é história um eterno retornar. Ou é ela que volta à casa, ano após ano, e que não sabe nada, ou que não se faz entender?!

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