A Rapariga Que se Perdeu a si Mesma
A rapariga sentia-se confusa, cansada de uma semana de insónia. Acordava e adormecia, mas não descansava. Tinha pesadelos que lhe pareciam reais de abdução para uma nave extra-terrestre, onde ficava deitada a ver os seres translúcidos de tamanho pouco maior que humano a injetá-la com um líquido verde seiva e ela sentia posteriormente uma lassidão progressiva que a imobilizava e lhe retirava os sentidos até se apagar a consciência! Isso acontecia recursivamente, já não sabia como se esconder, pois era sempre apanhada, geralmente em sua casa, ali mesmo da cama. Elevavam-na, faziam-na passar o teto, as paredes, já meia dormente e perdida dos sentidos, até dar conta de si num espaço de luz néon azul esverdeado, num silêncio absurdo, tratada como uma cobaia. Depois acordaria na sua cama, cansada, muito cansada! Queria pedir ajuda, mas já calculava que iria ser pouco entendida! Tinha cuidado! Ousou contar à amiga que lhe tinha dado o livro e até pressionado a leitura, após ela lhe ter contado um episódio estranho que acontecera depois de um choro de revolta e humilhação: reparou num pontilhado de luz na montanha mais próxima e em alguns aviões, que apenas ouvia e sentiu uma inversão de humor que passou de depressivo a grande exaltação, como uma superação transcendente - algo como a numinosidade, que aprenderia décadas mais tarde. E foi esse o mote para ler, quase forçada, o livro, que a deixou assustada e a imaginar situações, que, de tão vividas, se tornaram como reais.
A amiga não acrescentou nada de útil ao que ambas leram no livro, e ela ainda tentou com as colegas, cautelosamente...e por estranho que pareça, a Lena, no pátio da escola, olhou para o fundo dos seus olhos, bem ao meio da testa, e disse chegada de OVNI...ela ia caindo das pernas a tremer, afastou-se da parede a que estava encostada e pôde ler o cartaz que ficara por cima da sua cabeça. Logo percebeu o logro, mas ao mesmo tempo duvidou - seria coincidência?, mas que coincidência!!!
Os pobres nervos da rapariga estavam a ficar em franja! Para ter dados, todas as noites, quando ouvia um ronco arrastado riscar o céu, fazia um registo do que conseguia captar...pelo menos a hora, a cor das luzes...mas cada vez mais amedrontada, escondia-se da possível luz emanada, que lera no livro, poderia queimar ou alterar as células.
E pediu ajuda a família que a julgou insana e se assustou e a fez sentir-se a perigar na existência. Alguma dúvida, suspeitou depois, a orientou para um espelho pequeno no quarto e ela ainda a caminho sentiu uma presença a sair dela e a esvair-se pela nuca, ascendendo até a perder da consciência. A rapariga estranhou a sensação de si mesma, que ficou alterada. Correu para um espelho que lhe mostrasse o corpo inteiro e viu-se a apontar para o centro do peito com a mão direita e ouviu-se perguntar "Esta sou eu?!" ali mesmo à frente de quem da família viu, sem se proteger, na sua imensa aflição. Perdera o seu Eu. Já não sabia quem habitava o seu corpo, não se reconhecia apesar de ver uma imagem vagamente familiar ao espelho, não era si mesma no reflexo da alma!
E nesse dia de trauma a família foi carinhosa, mesmo aqueles que não o eram habitualmente, e a rapariga dormiu na cama da mãe, considerada doente! E ouviu, pela noite, o arrastar de motores no céu e soube que eram aviões. Claro, aviões! Costumavam por lá passar alguns! Como se tivera esquecido?! Ficou muito envergonhada de ter perdido o controlo do pensamento na última semana! Porque teria sido?! Demasiada pressão a querer a dispensa dos exames do secundário?! Ser transparente para os outros, sem relacionamentos preenchedores? Não sabia! Talvez um pouco de tudo, mais o medo de crescer, mais o desejo de grandes epifanias para a sua vida, uma ambição excessiva, algumas experiências extraordinárias de descoberta e raciocínio?! Ficara vaidosa?! Não sabia!
No dia seguinte, pôde faltar à escola pela primeira vez e ficou a desenhar rostos, olhos, maquinalmente. No dia posterior declarou-se bem, estava curada!
A vida prosseguiu na sua normalidade, mas a rapariga não esqueceu o devaneio em que se imaginou, até à vivência sentida como real, de perder o seu Eu, o que a levou a imensas filosofias posteriormente. E nunca se arrependeu de tantas e estranhas experiências, excepto ter-se esquecido do banal avião que por cima da sua casa passava todas as noites. Para onde iria?!