Da profissão - tempos imberbes.
Há muitos anos atrás, ainda ela tinha apenas a especialidade inicial que lhe permitira desenvolver as primeiras funções de conselheira de orientação escolar e profissional e estava em transição para as de psicóloga educacional, portanto ainda sem a formação em clínica, a não ser aquelas aulas no hospital em que os psiquiatras pareciam divertir-se a mostrar aos futuros psicólogos situações limite, e ela chocada e sem gosto por emoções gratuitas, faltava a algumas, que não faziam falta, pelo que via acontecer naquelas a que ia! e, dizíamos, ela ainda estava numa fase imberbe das novas funções, que foram sempre sendo acrescidas, primeiro técnica e cientificamente e depois com pouco mais do que burocracia e gestão...quando viu, na escola, um rapazinho de pequena estatura a correr atrás das raparigas para lhes tocar os cabelos. E elas fugiam e riam!... O seu fácies denunciava, o que lhe pareceu uma séria deficiência intelectual, mais do que isso, era quase simiesco. Faltavam alguns dentes e outros estavam cariados, exibia um sorriso excêntrico e era atarracado...naquela altura, estas situações não vinham para ela, mas para a educação especial, que com elas ficava, mesmo sem grande entendimento; foi o que concluiu quando abordou a docente daquela especialidade e esta lhe disse que o rapaz tinha um problema de desenvolvimento e que precisava de tempo para ganhar maturidade. Mas ela não se conformou, e como não tinham meios de sair do impasse, marcaram encontro com a psiquiatra dele. Aí sim, ela entendeu: "uma perturbação do desenvolvimento", disse a médica, e para o lado da psicóloga sussurrou, "uma psicose infantil" e prosseguiu esclarecendo vários pontos de relevo.
De seguida, foi importante esclarecer na escola quem lidava com o jovem, conversar com a família, com ele, e dar-lhe o maior bem-estar possível.
A psicóloga pedinchou junto da Faculdade de Medicina Dentária umas consultas gratuitas e o rapaz iniciou os tratamentos. No entanto, ela que acompanhou a situação junto de quem lhe fizera o favor, ouviu as dúvidas e aturou uma atitude de exclusão. Vejam só que a sra. insistia, meia enojada, que o rapaz "de certeza que se drogava", pois aquele estado dentário assim o sugeria (sim, dizia a psicóloga, toma há muitos anos medicamentos psiquiátricos), mas a sra. não aceitava a justificação e prosseguia que a mãe era certamente prostituta e mais uma vez, ela defendeu a imagem da família, informando que era muito colaborante e presente, mas a enfermeira não se convencia do erro da sua tese e rematava "se não é, já foi, que eu conheço muito bem os sinais". O rapaz lá fez o tratamento dentro daquela grande má vontade. Imagine-se o olhar que lhe lançavam e ele a perceber tudo! Sim, porque agora já se sabia que o rapaz era inteligente e aprendia razoavelmente...e a escola organizou-se - gente maravilhosa - para o levar a Paris com os seus colegas, gratuitamente no caso dele, e depois "foi ver a cara mais feliz do mundo" (sai-lhe a ela uma lagriminha, só de lembrar!).
Um dia, ela fez-lhe o último atendimento. Conversavam da vida, da escola e de coisas boas... Nesse dia, do prazer de estar no campo a ouvir os passarinhos. Ela lembrou-se de introduzir um relaxamento, que andava a aprender na formação em psicoterapia, pois havia necessidade de mais competências profissionais, e o rapaz ficou estanque. Muito sério, a princípio, iniciou depois uma batida de cabeça num armário próximo, que intensificou; ela, muito aflita, mas procurando com a linguagem corporal, em particular a voz, transmitir-lhe tranquilidade e ele frente a ela quase inerte, envia um braço na sua direção para lhe dar uma carícia, com movimento de robô, e ela lá foi explicando que seria melhor irem apanhar ar e aproximou-se da porta, que abriu, e ele permitiu-o calmamente, de olhar fixo no dela, e despediram-se!...
A psicóloga foi fazer os telefonemas necessários e já nem se lembra bem que mais fez, para me contar!