O Palacete

O palacete dos avós Bernardes fica junto à estrada militar, já à saída da capital. Na época áurea, quando o autocarro inglês da Carris passava, no piso mais alto, os passageiros levantavam-se com curiosidade para espreitar alguma extravagância ou novidade, como a grande piscina, os carros de gama alta às vezes ali estacionados, as belas e sofisticadas mulheres, uma festa, ou o que quer que fosse, certamente diferente daquilo de que eram feitos os seus dias, excepto os apresentadores da rádio, esses partilhados pelos dois mundos, ao vivo ou em ondas hertzianas. Mas isso era o que eu ouvia dizer, sobre o passado. Na adolescência, a minha mãe ia às quintas-feiras e sábados para o picadeiro e apanhava o autocarro na paragem anterior, por pudor e privacidade, mas sobretudo para ter tempo de subir ao piso de cima
e, também ela, entre o povo, se erguer do banco quando o autocarro passava pelos muros da sua casa, para saber o que eles queriam ver e sempre se surpreendia ao ouvir os sussurros e os "olha ali" de dedo espetado - ver a nossa vida pelos olhos dos outros é tão estranho! E depois, ficava cabisbaixa a desenhar na mente, em alternância com ver, os montes de Loures pejados de casas avulsas e as torres a despontar lá ao longe. Enquanto isso, o autocarro, como um animal, rugia com o esforço a subir a calçada e demorava uma eternidade a competir com as florzinhas gráceis dependuradas do muro cor de rosa, ainda do tempo do jardineiro Malaquias, a fugirem, aos solavancos, para o sentido contrário ao movimento do monstro verde. Assim me ficou esta memória, quase minha, de ouvir a mãe contar ao pormenor. O muro, tinha rebordo, como os bordados com renda, uma armação de ferro verde escuro, num encadeado Arte Nova, do mesmo desenho do portão imponente por onde os Srs. Bernardes do passado e os meninos Bernardes - a minha mãe e os tios António e Gustavo - passavam com o porteiro Ausendo sempre solícito.

Lembro da mãe me contar do seu pai ao chegar da bolsa, cansado, e com uma energia impulsiva, beijar a mãe dela rapidamente e para eles, os filhos, lançar um beijo a dividir: gostava de uni-los pelas cabeças e expirar um estalo com bafo de charuto e algum whisky sobre eles.

A avó Lúcia, que se aprontava para recebê-lo, usava perfumes requintados de Paris, vestidos de bom corte e tecido vindo de Espanha, mas os filhos ficavam como estavam, sujos da brincadeira no mato, hectares dele atrás do palacete, pois que a perceptora os instruía a serem simples e terráqueos. A perceptora Hannah era alemã-judia e ensinava os currículos e as artes da vida prática. Eram, além disso, todos escuteiros, apesar da ideologia, como explicava Hannah, sempre em pedagogia aberta à vida e à verdade. Era também ela de famílias da alta-burguesia, sussurrava-se que ainda, dos Rothschild.

Hoje não somos mais uma família de referência no país, não damos nem somos recebidos em festas, o avô morreu de ataque cardíaco, o pai partiu para o Brasil e foi-se-lhe perdendo o rasto e a mãe, depois de esperar uma década e nos criar, resolveu mudar o rumo à sua vida e foi para os Estados Unidos da América com o nosso padrasto. Ficámos com a avó Lúcia e o Castro. A avó Lúcia herdou o palacete e o Castro é o seu segundo marido, nunca tratado por pai, mas é um avô derretido para nós.

A minha irmã e eu andámos na escola pública e tivemos amigos. Cuidámos sempre de não partilhar a morada com eles. O palacete, degradado, as histórias políticas e pessoais dos nossos antepassados, não nos apetece reparti-las, dar explicações, sofrer a intrusão da curiosidade sobre os nossos espólios dignos de museu. Queremos poupar a avó Lúcia e o Castro a incómodos desnecessários. Festejamos o aniversário no Galeto desde a adolescência. É certo que ativámos a piscina há uns anos e os colegas iriam adorar, mas preferimos viver com privacidade e manter o nosso modo de vida, agora mais tranquilo e intimista do que nos tempos de pujança e bolsa do avô, que ainda hoje atraem a curiosidade de quem passa na rua ou viaja de autocarro, agora menos alto, que os deixa apenas imaginar uma vida de abastados ou devassos - assim, à escolha! 

Os caseiros ganharam o poder de quem sabe cuidar das terras e converteram o espaço cultivável numa quinta com hortas, pomar e criação de animais, que nos permitia viver como no campo! Agora até já não vou lá há muito, ao palacete e à quinta. O curso de medicina, em Coimbra, absorve o meu pouco tempo e há as namoradinhas! Ah, as meninas, o tempo que nos merecem!

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