A viagem

O carro engolia a língua comprida que era a autoestrada. Seguia para leste cortando o país ao meio. Perto do local escolhido no Google, pelas fotos e nome apelativo, os viajantes ondularam o olhar pelos horizontes sinusóides, carecas alguns, do fogo, outros com pequenos rebentos, do fogo anterior, ou, já com árvores maturas, esguias como pregos espetados em feitiço tribal africano, mas aqui, contra o ambiente! Eucaliptos! Eucaliptos em todo o redor, perto ou longe! Assim se faz a paisagem de Abrantes, vista da via escolhida pela app que lhes norteia a viagem. E, saem para estradas locais, bem comportados, quando a moça expedita da app lho diz, e prosseguem afundando-se tristemente em mais eucaliptos, mas agora sem comentários, não querendo estragar o dia. Em Milreu, só viram um grupo de senhoras junto à igreja, e foi uma delas que lhes disse que ali não havia restaurante, só em Vila de Rei. Comentaram o desinvestimento no turismo! E fizeram-se à estrada como sugerido, escolhendo da restauração, entre as poucas opções, talvez a melhor. O calor instalado já para a tarde nas paredes e chão, deixava poucas hipóteses se não buscar-se o desenho da sombra, às sortes da orientação das ruas e foram rindo dos nomes das lojas e assim de coisas fúteis e infantis enquanto apressavam o passo para acalmar no supermercado a aflição do insuportável excesso do termómetro e comprar líquidos frescos. Punham e tiravam as máscaras, num desvario.

Retomaram o caminho face ao objetivo. Mas a praia fluvial das fotos atraiu gente e mais gente e lombrigaram arfando pela margem até descortinar um único local possível e abancaram murchos e lentos. Molharam os pés, um leu o Expresso, o outro ficou de molho procurando uma adaptação às condições, enquanto se sujeitava aos guinchos e birras das crianças da vizinhança e suas mães brasileiras e pais portugueses, com uma frequência que os levou a debicar explicações, sem empenho de maior, e de novo querer tirar o melhor proveito ao dia. Mas não acabavam de chegar gentes e instalavam-se em locais criativos, e mais guinchos, algumas provocações de paus-de-cabeleira a casalinhos que invejavam, e por aí fora, até os nossos viajantes resolverem mudar para melhor spot, sentindo, mas não dizendo, que eram uns burgesinhos!

E chegados a melhores paragens, logo se confirmou que aquela praia sim, tinha nível e conforto e abancaram no bar com refrescos, gim e petisco, enquanto o sol morria lento e ainda sufocante. Ao lado instalaram-se dois aviões - duas jeitosas raparigas vintonas -, que levaram metade do tempo a fotografar-se mutuamente. Dizia uma: - é para verem que tenho uma amiga bonita e que saímos. Depois saltavam dos seus telemóveis fragmentos histriónicos de sons que lembravam vagamente música industrial, deveriam ser das histórias do Facebook ou parecido e passaram o resto do tempo a conspirar sobre alguém que ambas conheciam na rede. Após comerem - o que também fizeram -, foram-se dali, deixando o bar mais limpo de sons parasitas. E o sol afundou um pouco mais no horizonte, as sombras dos pufs ficaram compridas e os veraneantes abandonaram a areia. A beira-rio recebeu os patos para quem os viajantes tinham guardado bolachas, que desfizeram e distribuíram o mais justamente que puderam, apelando à calma de alguns que bicavam gananciosos os outros. E os patos devem ter percebido, pois ficaram mais conformados com a sorte de cada um em matéria de bolachas de canela. E depois o sol morreu atrás do monte e as cores degradaram-se para cinzentos misteriosos com figuras sombra contra fundos mornos alaranjados e as águas do Tejo descansavam em traços horizontais de um verde quase negro e os patos perfilaram-se à beira-rio num esquadrão em descanso e a limpar armas - neste caso bebericando e limpando as penas com bicadinhas. E depois anicharam-se numa quieta meditação - e eles, os viajantes, ergueram-se devagar, recolhendo os haveres, sem pressa do regresso que ia acontecer em breve, furando estradas navegadas por luzinhas rápidas, até à capital.

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