Eu e a outra Filomena

Em pequenas, quando eu visitava ou feriava na "terra", eu e a Filomena juntávamo-nos na casa da Tia Maria e do Tio Manuel para brincar. A Filomena tinha já conhecimento dos cantos da casa - e se ela era grande e cheia de mistérios - e eu pensava que a minha nova amiga era da família dos donos, mas não, estava enganada! Não tardava éramos duas crianças adotadas com simpatia pelo casal, uma adoção temporária, por umas horas por dia, para deleite e companhia dos hospitaleiros tios e nossa.


Mais crescidas, fazíamos renda e alguma conversa desenxabida junto ao poço, na horta ou em casa da avó da Filomena, sendo que sentia a minha amiga, constrangida. E esse sentimento continuava quando, já na rua, cumpríamos as rotinas de comprar os tremoços com pevides no Ti Augusto, fazendo fila, e depois nos refastelávamo-nos no café de Ti Raúl a vê-lo a servir bebidas, de lápis na orelha, sempre a conversar e a rir. Cheirava fortemente a café, a vinho e a perfumes pobres. No café, todos tinham zonas e lugares. O nosso era ao fundo perto da porta sempre fechada, junto à parede, a beber Laranjina C ou Sumol. Era dali que víamos os Monty Python e outras séries cómicas e filmes da tarde na RTP. Alternávamos o olhar para quem chegava, com avidez e curiosidade. Evitávamos o dos bêbados, como se fossem transparentes, mas espreitávamos por detrás deles os rapazes envergonhados que faziam o mesmo connosco, com souplesse e disfarce, e ainda víamos alguns pavões - para nós as duas, sem interesse -, de blusões de pele, largas espáduas e capacete dependurado no braço! Víamos e desligávamos, retomando com interesse a TV. Éramos ainda pequeninas, apenas espigadotas! A Filomena não saía da zona muitíssimo correta das meninas bem comportadas e isso entediava-me um pouco, a mim e certamente a ela também, mas eu tinha outro raio de ação, apesar de tudo!


Numa fase, conseguimos variar a nossa atividade e decidimos ir visitar os mortos em velórios que ocorriam nas suas casas. Isso permitia-nos espraiar um pouco, espernear por aquelas terras fora, andar quilómetros, às vezes, numa tarefa aprovada pela comunidade. Não me lembro de vermos um só defunto! Chegávamos à porta e arrepiávamos caminho! Era turismo!


Adolescente firmada, já escolhia outros grupos mais aventureiros, com outras histórias que não fossem as de gente velha e assim, nem sei bem como, deixei de ver a Filomena, mas fica aqui registrado que também foi minha amiga de infância.

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