Incompatibilidade - Dias de Marta.
≤Não me estou a segurar bem e não posso falar contigo ao telefone! Estou a liquefazer-me ao toque daquele assunto que será inevitável na nossa conversa. Talvez a derradeira. Aquela falta de vontade de ser inteiro que te adivinho. É fácil! És banal e os comuns fazem atos previsíveis, sempre que digo a mim mesma: "não!, não adivinho", lá está a realidade aos estalos como uma mãe antiga para me ensinar! Eu tomo dela: chapadões de luz, ou estrelas! E, dizia eu, é por isso que me derreto em águas salgadas e a visão turva! Já sei que vais dizer coisa nenhuma, és tão óbvio e desonesto intelectual quanto dizes "eu sou sincero". Já esperava, tanta insistência no óbvio só poderia anunciar a sua própria contradição! Nem tenho já conseguido falar ultimamente contigo. Tu falas e eu ouço, estupefacta, com os assuntos vazios da descrição da normalidade e da rotina! Até me parece que evitas dar tempo a assuntos profundos ou realmente importantes de serem falados! Como houve esta deriva? Falámos primeiro de pequenas revelações e histórias de vida e até nos conseguimos situar num espaço e tempo comuns, há dezenas de anos atrás. Foi até comovente e criou um laço entre nós! Mas foi precisamente a tua análise dessa situação que te assustou, pois eu era professora e tu aluno, ainda que estivesses no último ano de escola e eu no primeiro de trabalho! Separam-nos cinco anos, que foram encurtando ao passarem pelas casas das dezenas! Mas tu não queres crer que há cinco anos atrás eu era exatamente a mesma de agora, não acreditas que é pequena esta distância, sobretudo não é distância, é vida - alguma vida nos separa! És tão convencional, pensas pela cabeça dos outros ou do social e fazes-te mesquinho assim! E porque isso me importa?! Importou quando descobri que as palavras morreram de um dia para o outro, as da tua doce boca, dos teus ternos dedos a dedilhar-lhes as letras para as enviares nos quadrinhos de escrever da Internet. Foi instantâneo, um dia era tesourinho, no outro era muito mais velha do que a foto mostrava, ainda que tirada dois meses antes! Preocupação de quem não dá valor a águas profundas, vive pela opinião dos outros e a fazer dinheiro. Mas será que pensar, estudar, escrever é sem valor?! Poderemos conversar?! Duvido! Adeus então! Liquefaço-me por uns dias, espero não mais que uns curtos dias! Pena e saudades, mas já conheço bem esta situação!≥