Lolita

Vinha eu de mota na zona da Moita Seca, já escurecia, quando urgiu aliviar-me no matagal - coisa rápida -, e logo ali vi um tufo de pêlo a gemer, que agarrei, acomodei no blusão e retornei à estrada cheio de cuidado, com a coisinha fofa a revolver-se junto ao estômago. Acerquei-me da cidade mais próxima, comprei comida para a cachorrinha, e dei-lhe água - pernoitei ali mesmo explicando a situação no motel.

E desde aí batizei-a de Lolita e é a minha companheira animal fiel com a qual me esmero, já lá vão três anos. Depois da cirurgia para não engravidar, engordou, a minha miúda - é assim que gosto de lhe chamar.

Noutro dia, a miúda soltou-se e, soube depois, foi aliciada por um homem com bom aspeto, que a afagou e a atraiu com um osso! A pobre Lolita acabou no tacho e a pele dela como relíquia está dependurada nas traseiras da vivenda do assassino. Não pensem que se apresenta como um pária! Não, o comedor da minha Lolita é gente com trato e algum dinheiro. Não havia necessidade de me roubar o meu amor. Depositou os ossos numa caixa dos correios e enviou-me com um cartão em que descrevia uma refeição normal. Como fiquei?! podem imaginar a minha revolta, o destroço da minha alma?! Alguém pode pôr-se no meu lugar? Um ser amoroso, que eu amava ternamente, com dedicação - em todo o momento ela estava presente, pensava se estaria confortável, quando eu ou as filhas a poderíamos passear, se tinha comida e água, veterinário em dia, se ... Imaginam interromper uma vivência cândida, olhinhos dedicados, um amor sem fim, alegre, cheia de personalidade; que me importava eu dos seus quilinhos a mais?! Já ele sim, tornou-lhe mais gostoso o guisado! E não posso provar que sei quem é e incriminá-lo! Já sumiu com a pele que vi estendida no quintal, aquela que tantas vezes acariciei e por onde trocámos afeto farto e profundo. Minha Lolita! Parece que vejo os teus olhinhos expectantes a olhar para os meus, a tua cauda alegre, a tua agitação a fervilhar de vida, o calor e a seda do teu toque, o peso enroscado no meu colo, que me enternecida e acalmava! Mas que prazer teve o ladrão do nosso amor em tornar-te simplesmente carne?! Tu que eras pessoa para nós, cá em casa - tratada como uma -, e nunca fizeste mal a ninguém?! Eras uma alma, uma dávida que alimentava de afeto os meus dias e agora és o quê?! Detritos?! Saudade! Foste roubada!

Perdoa, Lolita, as vezes que fiz isso mesmo às mulheres que enganei atraindo-as com amor, comendo-as por carne - ainda que simbolicamente, é parecido!

Perdão a cada animal cuja vida decepei - ou fui conivente com a atricidade -, para devorar com gula! O tempo de vida que já roubei, mais do que toda a que vivi e aspiro viver!

Perdão às mulheres que desprezei por terem engordado, que por convencionalidade ou conformismo idiota desprezei, sendo que podia olhá-las como o fiz com a Lolita - vê-las, como sendo as mesmas, em qualquer formato! O mesmo amor! O mesmo respeito! Sem um belisco!

Perdão a todas as mulheres, em particular às minhas filhas, por ter sido um predador!

Eu sou o assassino, o labrego que consumiu a minha Lolita - a potência de uma vida sacrificada por um homem de letra pequena!

Ensinai-me a ser melhor!



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