O Noivo
A mãe insistira para que ela visse um artigo de jornal que descrevia uma vida desperdiçada e ela guardou para mais tarde dentro de uma folha do livro de matemática e só seis meses depois leu e respondeu. Era um pedido de ajuda inespecífico. Marcaram encontro.
- Olá, sou o Rumualdo Mendes, técnico gráfico.
- Olá, sou a Marta e cá estou para ouvir a tua história.
E ele levou-a ao Apollo 70 comer gelados grandes como se estivesse a obsequiá-la, muito palavroso, desenrolava uma história aliciante e complicada cheia de pontas para futura tecelagem, parecia um Xerazade. Ela não sabia nada daquelas artes, ouviu a maior parte do tempo e pontuou com uh-uhs e ah-sins, aqui e acolá.
- Sabes, tenho tido uma vida muito ativa. Sou muito empreendedor. Vim de África, Angola, onde tinha um belíssimo emprego. E sem nada, retomei várias atividades, que não me conformo com trabalhos rotineiros. Vivo com os meus pais. De momento preparo vários projetos e invisto em mim!
Era toda uma desenvoltura e linguagem a que não estava habituada e não percebia o que o homem fazia na vida, mas era fácil de ver que não era do seu ecossistema, não conhecia ninguém parecido.
- O que andas então a fazer? Não percebi bem.
- Ah! imensas ideias e planos - faço de tudo um pouco. Por exemplo, desenhei e construí toda a mobília do meu quarto, o teto é um um céu estrelado, os candeeiros nunca os vi antes comercializados e pintei uma tela do DaVinci na parede ao fundo, a última ceia.
- Profissionalmente, dizia eu.
- Tive um emprego na Nazaré, numa fábrica! Era um excelente trabalhador, plenamente reconhecido. Toma um cartão profissional. Vês?! Mas saí, não estava realizado. Hei de mostrar-te os meus planos para um quiosque lisboeta. Se ganhar o concurso, é uma pipa de massa que entra e dará muito jeito para equilibrar as finanças.
- Portanto, é um ex-emprego. E agora do que vives?!
- A vida de pessoas como eu é mais complexa, não se rege por regras simples. Por exemplo, eu trabalho na área da saúde se quiser, posso apresentar-se pessoas influentes, cheias de prestígio e com clientela culta e endinheirada. Clínicas no centro de Lisboa. Só tenho que resolver antes uns pequenos berbicachos na minha própria saúde.
- Que berbicachos?
- Eu tenho umas questões que e estão a ser estudadas pelos melhores psiquiatras do país, em Coimbra. Amanhã vou para lá.
- Vais para Coimbra amanhã. Mas que problemas são esses?
- Não se sabe, eles andam confusos, é algo pouco estudado, mas tenho a certeza que existe e eles têm que descobrir. E fico no por lá, pelo hospital.
- Ficas onde? No hospital?
- Sim, fico lá uma semana ou mais, até me darem alta, eles querem estudar o meu caso em profundidade. Um acha que é uma crise existencial, mas eu sei que é mais sério. E também vou ter que tratar uns assuntos com a assistente social - não se pode dar trégua, é preciso conhecer bem as leis e mostrar atitude - mudam logo!
E prosseguia perante o silêncio perplexo de Marta, com o gelado a derreter na taça e a saber-lhe a um estranho amargor, a cabeça a dar sinal de cansaço, mas não desarmou...
- Ah, desculpa estar a dizer estas coisas tão estranhas para ti, mas quero que saibas tudo da minha vida, que como podes perceber, é muito sui generis. Mas eu sou um homem de fé inabalável e vou conseguir alcançar os meus objetivos. Preciso ter ao meu lado uma mulher muito especial, com M grande, alguém inteligente e cheio de sensibilidade.
- Ah, ok - balbuciava Marta atordoada com a revoada da conversa que já durava horas e reforço de gelados, começou com a Cascata e acabou no Palhaço.
E por aquele dia ficaram por ali, ela com muitas dúvidas e dores de cabeça a despontar, mas ele, com toda a confiança, agendou um próximo encontro e pediu a morada para escrever cartas. E ela não soube como recusar, com ele sempre a conversar com elegância.
Começou a receber cartas autobiográficas e em forma de diário, gigantes, bem escritas, mas que a deixavam ansiosa, não sabia bem porquê.
Quando voltaram a ver-se ele fez questão de lhe fazer uma visita guiada na cidade dela, o que foi um pouco humilhante, mas ela dispensou o lado negativo e aproveitou a extensão do detalhar multidisciplinar. Apercebeu-se que era culto e que podia aprender com ele. Na mesma leva apresentou-lhe os amigos a trabalhar na saúde. Primeiro foram a um centro clínico com aroma argiloso, ele entrou para falar com o dono, um doutor com nome holandês, enquanto ela aguardava na sala de espera junto das utentes, mirando as paredes, com alguns diplomas internacionais; depois ele chamou-a para dentro do gabinete e um senhor mais velho que ambos, sorridente, recebeu-a perante o novo amigo dela. Fez uma conversa de circunstância, embora de tom profissional e uma observação qualquer sobre a iris dela e o potencial clínico de tal atividade. Ela não percebeu, sorriu e ficou a ouvir o amigo pedinchar um emprego para ela, como auxiliar de massagem ou administrativa, ao que o mais velho disse para ir tentando, pois de momento não estavam necessitados e o mais novo compreendeu que insistir, só mesmo com ela, para que não fosse apenas estudante - que desperdício! - e se tornasse mais ativa e trabalhadora. Assunto que a deixou desconfortável. E já sentados num café, ele elogiava as benesses do trabalho para o crescimento pessoal e que junto do senhor doutor com nome holandês iria aprender muito para um dia, quem sabe, com atitude e espírito empreendedor...mas tinha que começar por baixo, como o Nelson, que lhe iria apresentar de seguida. E dirigiram-se para a Praça do Chile, visitar o Dr. Nelson psicólogo, como exibia na placa, um jovem engravatado, de comunicação exuberante, que tinha começado a aplicar testes psicotécnicos para a escolha vocacional numa empresa de um militar e se apaixonara por Freud, estudara muito por si mesmo - tinha livros em coluna na beira da secretária em madeira distinta e design clássico - e assim, ela a ferver com a patranha, mas por dentro, sem ousar meter-se com aquela gente, foi esperando os rituais de despedida e comentou depois, já a sós, a sua discordância com tamanha barganha. E foi aí que ele arranjou argumentos, aos quais voltaria pontualmente de futuro, para atacar a sua visão tacanha da vida, que o Nelson sabia mais que muitos psicólogos, que merecia o título que se auto-proclamava, que ela teria muita a aprender com ele... Ela achou melhor não comprar aquela briga e abrigou-se numa atitude flexível - quem sabe, o homem sabia coisas, mas não devia intitular-se psicólogo, isso nem pensar, mas talvez fosse esperto, autodidata, sabia lá ela, e a modos de desvio de conversa perguntou pelo país de nascença do senhor da clínica a cheirar a argila. Era de Angola, o nome era inventado, os diplomas comprados em Espanha. Lá era um hipnotizador. Hoje, um senhor da medicina naturopata.
Aquele dia chegava para ela. Ele voltou para a terra, para os pais e ela para os seus também, aliviada por ter um teto com gente mais honesta e simples, mas lá no fundo jubilava com as descobertas no mundo-cão e não parava de pensar nas senhoras finas muito comovidas com o pedigree do senhor, que detalharam na altura, pai, avô, por ali fora. Sorriu triste! Como o mundo era!
Ele continuava a enviar cartas cada vez mais longas, agora com análises da dinâmica da família dela, com linguagem vagamente psicanalítica, que a deixavam chocada, com alusão a promiscuidade entre o avó paterna e o pai, tudo simbólico, mas chocante. Apesar de bem escritas, com letra grada e impecável, um estilo quase literário, era-lhe cansativa a leitura. Além disso, depositara na casa dela, o que designou por livro, uma tese sobre a dor, com uma complexidade tal de ideias, que a fez adiar a leitura, eternamente. Nas primeiras páginas ele argumentava que tinha uma dor crónica, física, o que muitíssimo mais tarde lhe lembrou a fibromialgia. Dizia-se incapacitado para trabalhar. Porém, nos dias em que estava na sua presença, não se queixou nunca, ou mostrou estar a sentir dor, o que dava ao sintoma um ar suspeito. Quando recebido em sua casa conquistara a admiração dos pais e calara a avó, que só observava, estranhamente, sem comentar. De novo ela sentiu estar perante alguém especial, capaz de dominar todos e pô-los de acordo. Conseguia tudo o que queria da família dela.
Levou-a a Coimbra e instalou-se numa pensão do onde costumava ficar quando não conseguia o alojamento gratuito no hospital. A senhora era convencional e ele apresentou-a como noiva e deu-lhe mais uns oito anos, sem a consultar. A senhora desconfiou e convidou-os a sair. Ele encarou tudo com a maior tranquilidade e saíram para a pensão do lado.
Mostrou-lhe a cidade como se se tratassem por tu, ele e as ruas, locais famosos, como se fosse a sua terra. Ele tinha estas artes de se apropriar das coisas, dos lugares, da mente das pessoas. Comportava-se com ela como um professor da vida, demonstrando e explicando como persuadia, invadia a mente; exibia, exagerando, as técnicas. Algumas eram da sua lavra, outras do pensamento positivo, do Dale Conergie, outras ainda, da hipnose. Ela sentiu-se uma péssima aluna: discordava dos valores, dos métodos, apenas apreciava o espetáculo, mas eis que ele lhe tirava o pano e a submergia na história em plena atuação. Foi assim que se teve de inventar em médica, usando os seus bons conhecimentos de biologia celular como escudo, mas só lhe apetecia fugir, ou gargalhar, sem que o interlocutor acreditasse nem desacreditasse, assim num estado do meio, confuso, e se refrescasse distraído no copo com bebida a gelar nas pedras de água. Suspirou quando saíram do bar e advertiu-o para não se armar em esperto, que os outros não eram todos estúpidos. Por exemplo, acabara de acertar num delegado de propaganda médica, que pontaria! Ele reconheceu que estivera incauto e com excesso de confiança e prometeu melhorar a técnica. Ela olhou-o descrente, dele, dela e da vida!
Depois levou-a até à casa dos seus pais, deixando-a, respeitosamente, dormir num quarto separado. O pai era quase transparente, sem opinar, a mãe adoentada, obesa, com olhar esperto em cima de Marta, observando e avaliando, sem comentar.
Apresentou-a aos amigos de infância e até a outros mais novos. Fez questão de aceitar o jantar do afilhado que acabara de casar e montar casa, pois queria-lha mostrar: era simples e moderna a cheirar ao pinho que abundava na mobília e repleta de almofadas de chita discreta, mas cosy. Era assim que ele gostava, parecia querer dizer-lhe, quando se desnoivassem em algo sério e brevemente - ela apreciou a estética e a simpatia do casal, mas cerrou os dentes e a vontade: a mim é que não me levas! Afinal sempre fora boa aluna! Pelo menos sabia reconhecer as manobras.
Apresentou ainda uma amiga, com quem já tivera esperanças, que aprendera contabilidade e agora trabalhava por conta própria - uma empreendedora de sucesso, comprara mais terras para a família, vestia bem, adquirira um piano e agora tinha um namorado que não a merecia, referiu por esta ordem, salientando que aquela amiga é que era um bom partido - assim ela quisesse! - Não, não tinha havido nada entre eles, ele sugerira, mas ela brincou dando um não claro.
Nas cartas prosseguia a persuasão para que trabalhasse e ela encontrou um emprego de vendas de casquinha de prata, onde ficou por uns meses. Um dia ele visitou-a na hora de almoço e conversou com as suas colegas - deixou-as de tal modo embeiçadas que competiram por serem mestres dela na arte da venda, coisa inédita, que a fazia ficar preocupada com o potencial manipulador do noivo. E pouco tempo depois foi encontrá-lo instalado numa loja de importante praça lisboeta, num negócio que apelidou de muito bom, com pulseiras que afetavam o estado de espírito. Mas isso durou pouco tempo! E voltou para os pais e para as férias no hospital, não antes de a encorajar a ir ao médico do por causa de doença que certamente tinha nos lábios, e explicou-lhe como abordar o assunto. No hospital a que foi, direcionaram-na para consulta onde falavam como que a dizer segredos e depois de observação completa questionaram porque estava ali e ela explicou a desconfiança do namorado e eles revoltados disseram-lhe que não era nada disso e que ela estava de boa saúde. Mas o noivo, descontente, exigiu nova opinião médica pois não queria que ela o contagiasse, e assim marcou num privado que repetiu a sentença do hospital. Ficou a resmungar entre dentes e ela, cansada, a perceber a hipocondria dele!
Já mais seguro, levou-a para o seu quarto, ensinando-lhe designações e posições íntimas a partir de um livro que lhe ofereceu. Ela sorriu e sentiu-se grata. Realmente já devia saber aquelas coisas, onde andava com a cabeça?! Sentiu-se infantil, ainda bem que ele lhe ensinava sobre a vida, mas o estilo, os valores... só escapava a preocupação com o ambiente, de que ela não ouvira falar até ali, a escassez de água, por exemplo. Era paradoxal que um homem que mentia tanto, fosse ao mesmo tempo ambientalista! Ele era o seu mentor, estava confiante, nas ela faria o que entendesse e ele iria ficar surpreso! Mas não já.
Um dia, chegou a vez de testá-la: expôs o desafio e ela assentiu. Num escritório na cave, em plena baixa, conseguiu falar com o dono de uma loja, mostrar-lhe a foto do noivo e pedir favores para ele. Mas o senhor era espiritista e não fazia nada do que o namorado queria e ela fora apenas um papagaio e saiu, não antes de apaziguar o senhor e explicar que tinha apenas sido um veículo do pedido, nem sequer acreditava naquilo. Bem, conseguira, mas ele não gostou do resultado.
Uma das vezes em que veio direto do hospital até Lisboa, numa esplanada da Av. Braamcamp Freire, tomavam água tónica com gelo, enquanto viam fotos. O homem tinha ido a uma discoteca e mostrava-se com os acompanhantes. A parede por detrás do sofá, era negra e espelhava de tão polida e Marta pode ver o reflexo do braço do seu namorado a tornear os ombros de uma colega utente internada em psiquiatria. Ora confrontado, ele foi sincero, sim, tinha um caso, a outra não se importava de não ser a única, era madura, e ele esperava que ela, a sua noiva, fosse compreensiva. Marta espumava para dentro, se calhar para fora e foi embora irritada. Naquela noite um sonho colocou-a ajoelhada na rua, a pedir, e davam-lhe colares de pérolas, o que ela de imediato reconheceu como aviso: andava ele a desafiá-la para trabalhar, se mudar com ele para Coimbra, trabalhar em contabilidade, tendo para isso lhe oferecido um mini livro que cabia na palma da mão, para ela começar a estudar - ridículo! Estava tudo dito: ele queria-a fragilizar, longe da família, e explorar o seu trabalho impingido todas as suas crenças e manias. Ela fez-lhe um manguito e deu-lhe de frosques, mas o que lhe doeu - que de resto, só sentiu alívio - foi quando disse à mãe e ela irrompeu num choro convulsivo e lamentou perder-lhe o contacto. Ela fez que não viu, e deixou o assunto à espera de maior maturidade sua, para o analisar.
Seis meses depois, a mãe partiu para viver com o ex- namorado da filha. Ficou por lá um tempo e depois voltou e todos silenciaram o interregno. Prosseguiram como se nada se tivesse passado.
O tempo passou, veio a Internet e um dia Marta procurou pelo nome dele e apenas detectou um aviso contra um homem que fazia entrevistas a quem julgasse ter visto OVNIs. Era ele!