Tempos de Faculdade 1
Ela era já professora, um pouco mais velha que os caloiros chegados do liceu seguido do propedêutico, mas muito bem disfarçada na turma de alunos estudantes-trabalhadores daqueles primeiros anos de faculdade. Pouco habituados a tirar apontamentos rápidos sucumbíamos, ora desistindo, ora gatafunhando ilegíveis testamentos. Ela fazia o milagre de escrever tudo em letra grande, roliça, em textos organizados graficamente, e depois - urra!- dava-nos para fotocopiar na Associação de Estudantes. Foi quem nos fez as sebentas dos primeiros anos de curso: obrigada Paula! Livros comprados, apenas um, o de biologia celular. Claro que havia um rapaz, de macaco de ganga, baixinho e de olho azul, que vivia noutro mundo: ia comprar livros a Espanha aconselhados por ex-professores e carregava com alguns naqueles dias de preguiça e furos do grupo diurno. Óbvio que foi longe!
A dispersão do curso por salas de aula, métodos de ensino e matérias era divertida. Ninguém se preocupava, a não ser um cota muito sério que já era psiquiatra. Éramos uma centena, distribuídos por dois turnos, o do dia com aulas dispersas e muitos furos e o da noite com muitos trabalhadores-estudantes, alguns provenientes do ad-hoc, fraquinhos em matemática, mas com maturidade e muito foco, soube seis anos depois, o porquê: subiam do escritório para a gestão de recursos humanos. Já os caçulas, cheiravam a coeiros, e faziam guerras de papelinhos pelo ar e depois limpavam o chão com as calças de ganga, arrastando o traseiro sentado de convívio em convívio de mata-tempo.
As aulas eram na maioria pelas caves e anfiteatros de Letras. Algumas, porém, seriam dadas na Faculdade de Medicina, no Hospital de Santa Maria. Nesse dia haveria muita emoção. Ora eram uns estranhos seres humanos a contar a sua história de olhar fixo no fim da sala, imóveis como estátuas, e nós aterrados e curiosos, sob caução e gáudio dos psiquiatras que nos davam aulas, ora em anfiteatros onde desfilavam um rosário de matérias sem fim à vista que nos consumiria tempos infinitos a decorar para o exame, ora perdíamos tempo precioso a olhar para lâminas e lamelas no microscópio, sem interesse algum, pensava eu! E penso ainda!
Nos primeiros anos, houve reboliço nesse anfiteatro: um colega, nosso representante em não lembro o quê, abotou-se com as poupanças, e foi desancado, até renunciar ao cargo e depois desapareceu do curso. Havia também uma menina, que aproveitava os tempos de espera e a caminhada entre faculdades para expôr o seu pensamento hipercomplexo que nos ocupava a mente, se deixássemos, por horas infinitas. Sair do hospital é que era: sempre fechado o local de entrada, tínhamos que nos dispôr à descoberta no labirinto, com famas de por vezes se ir ter à morgue. Por entre risos e alguma comoção, lá chegávamos à rua, mas uns cem metros depois, perto da cantina velha, surgia dos canaviais o homem da gabardina, sem tirar nem pôr: tan-tan! Fugíamos com uma corridinha e lá seguíamos até à dispersão por paragens de autocarro, que não tínhamos transporte próprio.
As aulas eram de tudo ou quase! Filosofia, investigação, neurociências (com outros nomes), história da psicologia, modelos e teorias, antropologia, matemática e estatística...
Era interessante e tranquilo! Não havia grande competição e aceitava-se a enorme pluralidade social e cultural dos alunos. Quanto ao método, havia de tudo e com esse todo nos formámos, crescemos e nos autonomizámos. Essa miscelânea de oportunidades, pessoas, faculdades, métodos e matérias foram a têmpera do nosso profissionalismo. A média de entrada de jovens provenientes só do ensino secundário é uma perda imensa como critério de entrada nos cursos!