A casa e a instituição
Sofia sorria com doçura para Kátia, a filha do Rui, seu marido. Gostava de ver a menina com aquele vestido. Era com orgulho maternal que ia buscá-la todos os dias à escola. Aos fins de semana, Kátia visitava a mãe, que estava deprimida. Perdera para o Rui o caso em Tribunal onde o acusara de tentar agredi-la com um ferro quente. Sofia tinha medo do Rui e amava-o. Ele às vezes beijava-a com um sentimento de irmão, marido, pai e mãe - uma família completa que ela sempre desejara ter. Sofia passara 13 anos numa instituição de acolhimento. Os irmãos também, cada um em sua. Três irmãos que não lembra. Guarda uma foto de todos.
Olha pela janela da cozinha, da cozinha bonita e bem equipada, o frigorífico cheio pela sogra. Olha pela janela e vê o casario pelos montes fora, algures Lisboa que mal conhece, só o rio, a expo, pouco mais! Nas traseiras, brinca a sua bebé com a avó, num pequeno jardim no quintal. Tem uma vida de sonho, até empregada, uma vez por semana. O Rui é que se zanga muito com ela, por ser desajeitada, porque não teve casa de família antes, porque a mãe é desprezível, porque faz tudo errado. Sofia sabe que tem alguns defeitos, mas o Rui exagera. Sobretudo ameaça. Às vezes mais do que isso, raspa-lhe a mão pela cara. Às vezes dá puxões nos cabelos de Sofia, nos bonitos cabelos longos que emolduram os olhos azuis no rosto oval e branco. É elegante, Sofia. O Rui gostou dela logo que chegou à casa da Dona Mira, que ia ser sua mãe adotiva, mas ficou de sogra! Voltas da vida!
Sofia tem medo quando o Rui volta do trabalho com o pai. Está cada vez mais nervoso. A APAV disse que a ajudaria, ficou de pensar. Vai perder a Kátia, vai morrer de saudades da menina que criou como uma mãe nos últimos três anos, mas a sua bebé nunca! Vai com ela!
É hoje - decide Sofia - e escreve um bilhete para deixar à tutora da escola, se não a encontrar.
Recebe um telefonema da tutora. Juntas, mais outra professora, vão buscar a bebé à creche e depois seguem para a APAV onde uma senhora de uma casa de acolhimento conversa com ela, lhe retira o telemóvel. Sofia tem fome! A APAV não tem comida, ela está sem dinheiro. A tutora leva-a e paga o almoço. Sofia parte com a sua bebé e a roupa do corpo.
Já passou um mês, esteve incontactável, agora pode telefonar com uma técnica por perto. Precisou pedir ajuda para roupas e sapatos à escola. Vem aí o Natal. O Natal da instituição como sempre se lembra. Já teve outra vida! Não é justo estar presa! Não quer mais lá continuar. Teme perder a guarda da filha, mas tem a certeza que a avó vai lutar por elas, pelas duas, e que vai conversar com o filho, com o Rui, para que seja um bom marido e a trate bem. O Rui deve estar arrependido. Ele é tão carinhoso. Sofia anseia por beijos e abraços do marido, que é como um irmão, pai e mãe. Tem saudades da sua casa, da sua cama, da sua vida, da Kátia, dos sogros! Sofia sai da instituição com a sua filha.
Regressa à escola e pede à tutora para não dizer o que ela lhe contou se for chamada a tribunal - é que tinha exagerado, não era bem assim! Pedia desculpa! Não aguentara perder a sua vida! Saiu descansada! O Rui estava maravilhoso! Agora seria diferente! Ele já sabia que ela podia fugir!